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odo mundo conhece alguém que já abortou. Enquanto escrevo esta reportagem – e você, leitor ou leitora, a lê – alguma mulher está realizando tal procedimento. Pessoas abortam independentemente de sua fé. Uma em cada cinco mulheres fará ao menos um aborto na vida ao longo de sua vida reprodutiva, a maioria quando jovens, e 56% delas seguem a religião católica, enquanto 25% são evangélicas, de acordo com a Pesquisa Nacional de Aborto (2018). A diferença acontece, sobretudo, nos riscos envolvidos, uma vez que quem tem maior poder aquisitivo consegue pagar, mas as demais morrem ou adquirem marcas para toda a vida. As múltiplas contradições do tema desaguam em algo latente na sociedade: as tentativas de controle de religiosos conservadores sobre o corpo de meninas e mulheres, sob o suposto aval do discurso de cada vertente.
Um exemplo disso ocorreu em agosto de 2020 com o caso de uma menina de 10 anos que engravidou após ser estuprada pelo tio no Espírito Santo. O acontecimento trouxe à tona o retrato da violência contra crianças no Brasil e os entraves do acesso à interrupção da gestação, garantida por lei neste contexto. O Código Penal brasileiro considera o aborto um crime desde 1940, sendo permitido apenas em caso de estupro, risco de morte à gestante ou se o feto é anencéfalo. Apesar de o ocorrido por si só já causar indignação, uma cena em especial ganhou as telas e manchetes da imprensa. Diante da autorização da Justiça para a garota realizar o aborto, um grupo de conservadores religiosos protestou em frente ao hospital em que ela seria atendida, tentando impedir o procedimento.
E este crime não é um fato isolado. Desde então, ocorreram denúncias diárias de outras crianças pelo país, que também foram vítimas de violência sexual, principalmente ocasionadas por familiares e demais conhecidos. Dados oficiais mostram que acontecem, em média, seis internações diárias por aborto entre crianças de 10 a 14 anos que engravidaram depois de serem estupradas. Essas informações incluem procedimentos em hospitais e internações por abortos espontâneos ou realizados em casa.
Quando o recorte passa para a quantidade de estupros de crianças e adolescentes no território nacional, sem levar em conta os abortos, o cenário é ainda mais assustador e revela a dimensão dessa problemática. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2019, a cada hora, quatro meninas de até 13 anos são estupradas. Por isso, beira a desumanidade o conservadorismo inserir uma “moral religiosa” nessa questão. “Esse tipo de atitude desconsidera totalmente a vida da criança”, afirma Gisele Pereira, integrante de Católicas pelo Direito de Decidir no Brasil, coletivo criado em 1995 e que reúne representantes de todos os estados pela garantia dos direitos das mulheres.
Uma em cada cinco mulheres aos 40 anos já fez ao menos um aborto na vida, a maioria quando jovens, e 56% delas seguem a religião católica, enquanto 25% são evangélicas, de acordo com a Pesquisa Nacional do Aborto (2018)
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Em setembro, o Governo Federal tentou novamente criminalizar as vítimas de violência sexual e publicou uma portaria sobre aborto em caso de estupro, na qual estabeleceu um novo procedimento para essas situações. O texto determina que os profissionais da saúde terão de denunciar à polícia, sem levar em consideração a vontade da vítima. “É uma forma de impor mais uma dificuldade ao acesso a esse direito e privar a liberdade da pessoa para denunciar. O estado não pode intervir dessa maneira, mas sim, deve garantir políticas públicas de prevenção de qualquer tipo de violência”, ressalta Gisele.
Em meio aos debates sobre a falta de garantia de direitos das mulheres, partidos políticos acionaram o STF e declararam que a portaria viola os preceitos fundamentais do direito à saúde, da inviolabilidade da vida, da garantia à intimidade e privacidade, da dignidade e da vedação ao tratamento cruel, desumano ou degradante. No entanto, a Advocacia-Geral da União (AGU) enviou um parecer ao Supremo Tribunal Federal (STF) em que afirmou que a nova portaria sobre aborto em caso de estupro não restringe os direitos da vítima e que não há questão constitucional a ser enfrentada, no entendimento do órgão. Como coloca o comunicado, a nova regra vai permitir ao governo colocar em ação uma “nova política de enfrentamento e combate ao estupro”, pois estabeleceu um trabalho integrado entre as áreas da Saúde, da Justiça e da Segurança Pública.