experimentação

Futuro ancestral

A cozinha vegana dos monges budistas japoneses é o destaque da vez no requisitado Aizomê, restaurante em São Paulo comandado pela chef Telma Shiraishi

por Artur Tavares 22 abr 2022 01h55
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(arte/Redação)

e todos os grandes profetas da Antiguidade, Sidarta Gautama era o único vegano. O Buda acredita que nessa roda cármica toda vida importa, por isso não é justo valer-se de outra em benefício próprio. Enquanto o budismo se espalhou pelo leste asiático ao longo dos séculos, as práticas alimentares consolidaram-se na mesma escala, principalmente entre aqueles que seguiram a vida monástica.

Inspirada nessa história fundamental, a chef paulistana Telma Shiraishi passa a oferecer o Shojin Ryori no menu degustação do seu restaurante, o requisitado Aizomê. São oito tempos com sabores típicos japoneses e alguns toques regionais, muitos vegetais, algas, cogumelos – e, você não entendeu errado, não há nenhum peixe cru.

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“É um momento de debater a sustentabilidade e as práticas do passado. Um dos preceitos do Shojin Ryori é não fazer mal aos animais, por isso não se comem bichos da terra e do mar. Valoriza-se muito as dádivas da natureza, das montanhas, dos campos”, explica Telma por detrás de seu balcão enquanto prepara uma pasta de sementes de gergelim e tofu, que será servida com hoshigaki, caquis desidratados à moda japonesa.

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A chef conta que o Shojin Ryori foi instaurado pelo mestre Dogen, fundador do budismo Zen, no início do século 13. Sua formalidade de apresentação – em pequenas porções e com etapas bem determinadas – e sua preferência pela sazonalidade acabaram inspirando o Kaiseki, a atual alta gastronomia japonesa, tão desejada ao redor do mundo. Só que, hoje em dia, as expressões regionais foram sendo substituídas por pescados, ou então por porcos, frangos e seus miúdos.

“É um momento de debater a sustentabilidade e as práticas do passado. Um dos preceitos do Shojin Ryori é não fazer mal aos animais, por isso não se comem bichos da terra e do mar. Valoriza-se muito as dádivas da natureza, das montanhas, dos campos”

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(Rafael Salvador/Divulgação)
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(Combinado de sushis veganos, com yomate, folha de mostarda, flor de cerejeira, entre outros / Rafael Salvador/Divulgação)

Parece estranho, mas não é

Então, o hype da vez na gastronomia japonesa não é uma fatia de atum de manejo sustentável na costa brasileira, e sim uma refeição vegana com tudo aquilo que a natureza dá pertinho de onde você mora. Se isso não soa muito nipônico, a resposta mais uma vez está nos ensinamentos: “Os budistas são bastante ligados à sazonalidade e à localidade, valorizando aquilo que dá especificamente nas estações do ano, e sempre de produtores locais”, diz Telma. “Para eles, os alimentos no auge das estações são chamados sakari. O caqui está no auge da estação, tanto que já deu para o hoshigaki.”

A chef ainda diz que “os alimentos no início ou no fim da estação também têm nomes específicos. Já vi pinhão neste início de outono, mas eram muito pequenos, ainda um pouco verdes. Tem gente que adora, porque sente esse gostinho dos primeiros frutos. Então, para os japoneses, cada estação e seus momentos têm seus sabores.”

“Os alimentos no auge das estações são chamados sakari. O caqui está no auge da estação, tanto que já deu para o hoshigaki. Os alimentos no início ou no fim da estação também têm nomes específicos. Já vi pinhão neste início de outono, mas eram muito pequenos, ainda um pouco verdes”

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(Rafael Salvador/Divulgação)

Tubérculo comum no continente americano, o tupinambo virou um delicioso suringashi – um caldo tradicional feito do vegetal mais fresco à disposição do cozinheiro. A abóbora moranga não ganhou camarões, mas veio recheada de um delicioso kare – este também de abóbora, e as castanhas estavam presentes em diversos pratos – inclusive, Telma serve na entrada tofus feitos não só de soja fermentada, mas também de gergelim e amêndoas.

“Os Zen dizem que os vegetais são as formas de vida perfeitas, porque conseguem produzir seus próprios alimentos, enquanto todas as outras formas de vida dependem deles. Esses seres autotróficos se doam para nós para manter a vida na Terra”, diz a chef.

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(Rafael Salvador/Divulgação)

Reafirmando tradições

Descendente de japoneses e nascida no Brasil, Telma dá uma risada quando lhe perguntam se a inspiração para o novo menu se deve pelo fato dela ser budista. “Cresci na igreja como muitos de vocês. Hoje em dia, no Brasil, nós somos essa mistura de tudo, um pouco católicos, um pouco budistas, xintoístas nos momentos de celebração!” Ela rapidamente volta os olhos aos combinados de sushis veganos que está montando, o ponto final do omakase antes da sobremesa. Inventiva, ela prepara uma barquinha de ervilha torta e posiciona um bolinho de arroz dentro. O vermelho não é atum, mas uma pétala de tomate que passou por um processo de cura, e outro niguiri tem a deliciosa combinação entre folha de mostarda e flor de cerejeira em conserva. Para adoçar o paladar, o menu termina com uma gelatina de batata-doce, castanhas, edamame, kanten e azuki.

À frente do Aizomê há 15 anos, Telma hoje é também a cozinheira oficial do Consulado Japonês em São Paulo, e detém título oficial de Embaixadora para Difusão da Cultura e Culinária Japonesa. A escolha de oferecer diariamente um omakase vegano tem a ver com um processo que ela própria já estava vivendo. A chef conta que já não consome mais proteínas animais em sua casa, e que conseguiu convencer a filha a fazer o mesmo. “Depois de um tempo, percebi que poderia honrar outros aspectos japoneses do que a comida em si. Veja o legado de agricultura que os imigrantes nos deixaram, honrá-lo é uma tradição cultural, é importante contar essa história através da mesa.”

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(O Sobamaki é uma espécie de sushi no qual o arroz é substituído por soba (macarrão) de trigo sarraceno / Rafael Salvador/Divulgação)

Os pratos do omakase inspirado no Shojin Ryori também estão disponíveis nas escolhas do cardápio, sempre com a mesma disponibilidade relacionada à sazonalidade dos produtores que atendem o restaurante. O Aizomê fica na Alameda Fernão Cardim, 39, no bairro do Jardim Paulista. Em São Paulo. Para a experiência no balcão do restaurante, recomenda-se a reserva.

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