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Torcidas antifascistas – As mulheres na linha de frente

Em um ambiente tradicionalmente machista, elas estão se destacando por não abaixarem a guarda na luta contra o autoritarismo no Brasil

por Rodrigo Grilo, Roberta Nina, Leandro Iamin Atualizado em 31 ago 2020, 13h39 - Publicado em 24 jun 2020 14h40
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(Clube lambada/Ilustração)

eia a primeira parte dessa reportagem aqui

Torcidas organizadas são, como sabemos, um agrupamento majoritariamente composto por homens. O esporte – e particularmente o futebol – insiste, como afirma a professora da Unicamp Heloísa Reis, em guardar essa área a eles, à masculinidade determinada pela sobrepujança da força. “No entanto, é perceptível um aumento da participação das mulheres nas torcidas organizadas, na última década. Hoje, cerca de 14% dos membros são do sexo feminino”, pontua Heloísa, que assina o livro Futebol e Violência.

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(Instagram/Reprodução)

Aos 38 anos, a empresária Dadá Guanam foi uma das mulheres que ocupou as ruas e pediu por democracia (leia quadro abaixo), na Avenida Paulista. Com um histórico de duas décadas de militância em uma torcida organizada do Corinthians, ela esteve acompanhada de cerca de outras vinte mulheres, torcedoras, não-torcedoras e participantes de movimentos como MST e MTST. Durante a passeata, Dadá e suas parceiras se posicionaram na linha de frente do grupo que caminhava pela Avenida Paulista, deram os braços e formaram um cordão de isolamento. “Em certo momento, ouvi um cara atrás dizer: ‘Quem são essas minas aí na frente? Não é perigoso, não?’”, conta Dadá. “Na hora, eu virei e disse: ‘Quer ficar do meu lado, irmão?’. Aí um outro homem precisou afirmar que iríamos permanecer ali para legitimar a nossa presença na frente do coletivo.”

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“Em certo momento, ouvi um cara atrás dizer: ‘Quem são essas minas aí na frente? Não é perigoso, não?’. Na hora, eu virei e disse: ‘Quer ficar do meu lado, irmão?’”

Dadá Ganam, empresária
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(Caio Guatelli/Fotografia)

O olhar patriarcal e machista do manifestante que questiona a “ousadia” da mulher revela, para além da Avenida Paulista, um discurso perverso que ecoa Brasil afora: o lugar da mulher não vai até onde ela quiser. A professora da Unicamp Heloísa – para quem a mulher vem sendo aceita nas torcidas organizadas com a ressalva de cumprir papéis determinados pelos dirigentes – lembra de um episódio ocorrido no 1º Encontro Nacional de Mulheres de Arquibancada, realizado no Museu do Futebol, em 2017, na capital paulista, que confirma a tese. “A maioria das torcedoras que participou teve que pedir autorização aos presidentes de suas torcidas para ir ao evento. E mais: os dirigentes determinaram o que elas poderiam ou não falar ali”, afirma. “Ou seja, a mensagem desse líder é: vejo que, nesse momento, estamos nas ruas lutando porque há riscos para a democracia no Brasil, mas não enxergo o risco que ofereço dentro da minha torcida quando não dou direito igual às mulheres.”

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(Caio Guatelli/Fotografia)

“Eu estava ali, na frente da polícia, e apanhei muito”

Dadá Ganam, 38 anos, empresária e integrante de uma torcida organizada do Corinthians

“A manifestação do dia 24 de maio foi algo muito maior do que futebol. As mulheres que pedem por democracia nas ruas simbolizam também a luta delas pelo seu espaço no estádio. Quis estar presente, porque, duas semanas antes, houve um ato menor na Paulista no qual a maioria dos presentes era homens. Como eu sabia quem eram os caras que estavam à frente do protesto pela democracia, fui até eles e fiz uma cobrança sobre a falta da presença feminina na manifestação. Argumentaram que naquele primeiro encontro tudo aconteceu de última hora, foi organizado entre eles e, para o próximo, fariam uma reunião para convocar todo mundo.

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(Caio Guatelli/Fotografia)

Percebo que, quando se fala em torcidas de futebol, as pessoas logo pensam em homens. Já as mulheres são tratadas como as ‘mulheres da torcida’ ou ‘coletivo’. Bom, eu me preparei para chegar bem antes do combinado – meio-dia – ao ato da Avenida Paulista, para não dar de frente com manifestantes pró-governo. Cheguei na Paulista às 11h e fiquei por lá até pouco depois das 17h. O ato foi organizado por grupos associados às torcidas de São Paulo e o manifesto com as instruções que recebemos pedia para que, preferencialmente, as pessoas fossem vestidas de preto, sem roupas de time.

Outras pessoas, e não apenas torcedores, estavam por lá, no entanto. Era também uma manifestação pela democracia, sem levantar bandeira partidária, um ato para ser pacífico, sem confrontos. Esse pedido ficou muito claro. Eu ainda frisei para as nossas lideranças que, mais do que convocar todo mundo para o ato, seria importante reforçar a mensagem da pauta entre as pessoas que ali estariam. Afinal, era uma oportunidade de a gente também politizar a torcida. As poucas tentativas de gritos de torcida que surgiam na manifestação foram logo abafadas.

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(Caio Guatelli/Fotografia)

Começamos a caminhar pela Paulista e o momento mais marcante, para mim, se deu quando algumas das meninas foram para a frente do grupo, deram os braços e fizeram um cordão de isolamento. Contando comigo, havia entre 15 e 20 mulheres. Foi quando ouvimos um homem atrás da gente sugerir que não deveríamos estar na linha de frente, e o convidei a se juntar a nós.

“No momento de dispersão, os apoiadores da direita começaram a aparecer pelas ruas paralelas do MASP, todos fardados com roupas militares e do Exército, hasteando bandeiras e vindo pra cima de nós”

Dadá Ganam, empresária

Nos manifestamos e, antes da confusão começar, as lideranças tomaram a frente do ato e pediram para a galera ir embora porque já havia rolado duas horas de manifestações pacíficas e o objetivo tinha sido alcançado. Fomos, ocupamos e iríamos embora juntos para evitar confronto com minorias dentro de metrô, ônibus e etc. No momento de dispersão, os apoiadores da direita começaram a aparecer pelas ruas paralelas do MASP, todos fardados com roupas militares e do Exército, hasteando bandeiras e vindo pra cima de nós. Vimos aquela mulher andando com o taco de beisebol e aí começou o vuco-vuco na minha frente.

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(Caio Guatelli/Fotografia)

Eles [apoiadores do presidente Jair Bolsonaro] passaram entre nós e começaram a zombar, provocar e vir pra cima. Foi o estopim e, nesse momento, a polícia já estava na nossa frente, batendo na gente. Eu estava ali, na frente da polícia, e apanhei muito. Não tinha jeito de atravessar ali porque a polícia já estava fazendo cordão na gente, com bomba e tiro. E aí eu pensei em revidar para me defender, em ir pra cima para sair dali porque não estava mais conseguindo respirar por causa de tanta bomba, tiro de bala de borracha e gás de pimenta na cara da gente.

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(Caio Guatelli/Fotografia)

Quando eu já estava indo embora, sentido [rua da] Consolação, várias bombas foram atiradas, de muito longe, na nossa direção. Elas caiam na minha frente; eu estava andando mais rápido porque, se corresse, iria morrer sufocada. Massacre! Aí o Choque chegou, helicópteros, viaturas, tudo isso do nosso lado. Imagina se sou eu com um taco de beisebol na mão, ali no cordão de isolamento, bem no momento em que a polícia chega? No momento do conflito, a polícia não falava nada pra gente, só olhava. Naquele contexto, identifiquei apenas uma mulher entre os policiais; o restante era composto por homens. Um deles repetia o tempo inteiro em tom ameaçador, para nós: ‘Vão embora!’. Seria mais fácil controlar 30 do que 3 mil pessoas. Havia pouca gente no outro grupo de manifestantes, mas elas foram para o confronto. Não tinham medo porque contavam com respaldo.

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(Caio Guatelli/Fotografia)

No momento do confronto, a gente se dispersou muito. Uma amiga correu junto comigo. A gente não se desgrudou, falávamos que sozinhas não ficaríamos. Era eu por ela e ela por mim; sozinhas, nunca. Fomos embora juntas. Para saber das outras, a gente trocava mensagem. Todas estavam ok e ficamos bem. Nossa participação como mulher no ato foi importante, sim. Mas, na minha opinião, são duas disputas políticas diferentes. Acho que o momento da mulher combater alguma coisa dentro das arquibancadas, das torcidas, seja onde for, é em outro lugar, em um outro momento. É importante a mulher presente ali, atuando, a torcedora presente pela democracia. E mostrar que estávamos lá na hora do combate, na linha de frente, para depois levar a pauta lá pra dentro da torcida, para que, depois, possamos debater. É uma coisa a ser registrada lá dentro.

Foi extremamente importante as mulheres estarem ali naquele cordão, na linha de frente do movimento. Foi forte para a nossa luta particular também e isso deve servir como argumento. Espero que as minas que lá estiveram entendam que essa nossa presença deva ser usada em favor delas dentro do estádio. Embora eu lute contra isso, sinto que é tão difícil de eu falar sobre a repressão sofrida pela mulher [em torcidas organizadas]. Mas isso é comigo, que já estou há 20 anos em uma torcida. Mas eu não tenho muito embate com diretoria. Sempre houve muito diálogo.”

“Espero que as minas que lá estiveram entendam que essa nossa presença deva ser usada em favor delas dentro do estádio”

Dadá Ganam, empresária
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(Caio Guatelli/Fotografia)

Antifas além da Avenida Paulista

Episódios antidemocráticos explicitados tanto no evento realizado no Museu do Futebol quanto no primeiro ato na Paulista não encontram guarida na Paysandu Antifascista – 1914, na capital paraense Belém. “Não somos uma torcida com predominância do poder masculino, embora a maioria dos participantes seja homens. Assim é porque aqui as mulheres estão na linha de frente e conseguimos estabelecer uma relação de liderança que não é a presente na maioria das torcidas”, diz a servidora pública Midi Flores, 38 anos. O movimento de torcedores antifascistas do Paysandu, o Papão da Curuzu, foi consolidado em 2018. Ele é resultado da união de grupos de amigos/torcedores que discutiam temas relacionados ao combate às opressões e, com a possibilidade cada vez maior de Jair Bolsonaro se eleger presidente, tornou-se uma necessidade orgânica.

Mais do que uma torcida com lugar determinado na arquibancada, a antifa de Belém se vê como um movimento de torcedores antifascistas. Seus participantes, cerca de 70, vão ao estádio, permanecem juntos, mas a maior intervenção deles ocorre fora das arenas, promovendo eventos como 1º Seminário pela Democratização do Acesso aos Estádios de Futebol, com a presença de representantes da OAB e da luta pela diversidade sexual, e cursos sobre o fascismo e a atuação antifascista no movimento de torcidas de futebol. “Coletivamente, sofremos muita discriminação, misoginia, machismo, dentro dos estádios”, afirma Midi, que usa o conhecimento como escudo para se prevenir e combater tais comportamentos. “Eu entendo de futebol histórica e sociologicamente falando, o que me faz ter uma certa relação de autoridade. Na nossa torcida, há representantes de movimentos LGBT que são autoridades ali e extremamente respeitadas.”

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(Caio Guatelli/Fotografia)

Conseguir estabelecer uma relação de liderança, uma situação atípica vivida pelas antifas do Paysandu, vem transformado a maneira como elas são vistas. E essa exceção, de acordo com a servidora pública antifa, é cada vez mais comum, e uma vitória a ser comemorada ainda que, no coletivo, o machismo continue refletido. “Eu não concordo quando uma mulher diz não gostar de futebol, porque isso é uma violação machista. Não é verdade que ela não gosta de futebol. Na real, nós não fomos sociabilizadas nos espaços de futebol, o que reflete uma violência machista da qual sofremos”, diz Midi. “Quando sociabilizadas nesses locais, gostamos do esporte. Por isso, valorizar o futebol feminino é uma pauta fundamental às torcidas e movimentos antifascistas do Brasil, porque irá contribuir no combate à misoginia e ao machismo na sociedade como um todo.” E deixa claro, completa Midi, que quem ama futebol o faz em sua totalidade e não apenas quando praticado por homens. “O futebol é um caminho potente para a gente combater o machismo na sociedade.”

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(Caio Guatelli/Fotografia)

No jardim com mais variedade de flores vive a primavera bonita. A luta pela democracia que mescla camisas de cores e formas distintas reúne homens e mulheres das classes ejetadas dos estádios e reverbera nas cinco regiões do Brasil – torcidas também se reuniram no Distrito Federal com faixas e cantos por democracia. É, enfim, a causa que o futebol, objeto do amor nacional, negou a todas estas pessoas quando tratou o período de grandes eventos na base da bomba, do atropelamento de causas (e aldeias) e da construção de infames estádios que não dialogam com a vida de arquibancada e cultura que formam a base sociológica desses grupos, maiores ou menores, de clubes campeões ou não, que sempre estiveram aí, sustentando o capital afetivo de um esporte há muito tempo ferido.

É, afinal, o futebol brasileiro, um histórico lugar de afirmação de desigualdades, de imposição disciplinar, que sempre marginalizou a voz dissonante e rebelde. Que deixou muito por dizer em outros períodos sombrios e sem democracia do país e que, recentemente, viu seus últimos presidentes da CBF serem condenados. Quem vive o futebol no Brasil sabe detectar, com clareza, por experiência, os movimentos autoritários e antidemocráticos. Já entram no jogo da luta pela democracia aquecidos e ligados. Os grupos antifas estavam um pouco dentro de cada pauta daquela reunião de 2013. Aquele coração contido, ali, enfim saltou pela garganta e anda ecoando por aí.

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(Caio Guatelli/Fotografia)

Porcentagem aproximada de mulheres nas torcidas antifas

Para a pesquisa acadêmica Torcidas Antifascistas no Brasil: o futebol como trincheira polícia, o jornalista Diogo Magri traçou, em 2019, as características principais de 12 importantes torcidas que nasceram com finalidade antifascista. Por meio dela, é possível deduzir a participação feminina entre seus participantes ativos:

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