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As responsabilidades de ser branco

Lia Vainer Schucman, psicóloga e especialista em branquitude, reflete sobre desigualdades em um país que banhado de racismo

por Artur Tavares Atualizado em 11 Maio 2021, 01h06 - Publicado em 11 Maio 2021 00h49
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(Arte/Redação)

entre tantos fenômenos sociais estranhos que acontecem no Brasil, um deles atinge em cheio profissionais das áreas “de humanas”, como jornalistas, antropólogos e professores: nós saímos da faculdade, nos cercamos de pessoas progressistas, e acreditamos que nosso mundo é um paraíso da desconstrução. Não somos racistas, lutamos por igualdade entre os sexos e pelo achatamento da pirâmide econômica do nosso país. E aí, quando o povo elege um bando de fascistoides, nós caímos na real.

Desde o início da pandemia, a crise que vivemos no Brasil se agrava cada vez mais. Com a política do “fique em casa”, ficou escancarado quem tem privilégios aqui na Pindorama, e quem continua a ser tratado como se a época dos navios negreiros fosse hoje. Em prol da nossa saúde e da economia, não fizemos lockdown. Pelo contrário, forçamos trabalhadores extremamente mal remunerados a continuar enchendo os vagões de trens e do metrô, esmagados nos ônibus apertados como sardinhas enlatadas.

Em lugares que tratam (um pouco mais) a sério os dados sobre a covid-19, como São Paulo, os indicadores mostram o óbvio: a cidade registra cotidianamente muito mais mortes em bairros das periferias do que no centro expandido. Se o vírus não faz distinção, a população se encarrega disso selecionando quem vai diariamente para o matadouro e quem tem a chance de ser poupado – e aí, se você for pra uma festa clandestina ou qualquer outro tipo de aglomeração, a irresponsabilidade é só sua, individual.

Ser branco no Brasil é viver emancipado, dono das próprias escolhas, alguém que nunca vai precisar enfrentar a meritocracia como ela deveria ser: uma política para todos. Eu tenho amigos que pensam assim – às vezes até inconscientemente – e acredito que você tenha também. Deles, ouço algumas coisas que ferem completamente meus princípios. “Cotas só aumentam a discriminação, as plataformas de delivery e transporte estão salvando desempregados, se fosse a esquerda estaríamos em lockdown completo há um ano.”

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“A ideia de que toda a pessoa do grupo representa o grupo como um todo é um dos processos de racialização do outro, que é próprio da branquitude. O outro é um grupo, o outro é racializado, e nós somos indivíduos, cada um representado com humanidade”

A pior de todas as coisas que ouvi nos últimos tempos dizia respeito ao comportamento de Karol Conká e Lumena na edição desse ano do Big Brother Brasil: “São essas atitudes radicais dos negros que geram esse racismo da nossa sociedade”, uma conversa no WhatsApp que terminou com o branco liberal reproduzindo um trecho de um discurso eternizado de Martin Luther King, “I Have a Dream.”

“Eu tenho um sonho que um dia nas colinas vermelhas da Geórgia os filhos dos descendentes de escravos e os filhos dos descendentes dos donos de escravos poderão se sentar junto à mesa da fraternidade.

Eu tenho um sonho que um dia, até mesmo no estado de Mississippi, um estado que transpira com o calor da injustiça, que transpira com o calor de opressão, será transformado em um oásis de liberdade e justiça.

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Eu tenho um sonho que minhas quatro pequenas crianças vão um dia viver em uma nação onde elas não serão julgadas pela cor da pele, mas pelo conteúdo de seu caráter. Eu tenho um sonho hoje!”

Tenho certeza de que esse amigo não entendeu o discurso do doutor King, ou então se colocaria em seu lugar e refletiria sobre as palavras daquele que é considerado um dos maiores combatentes da luta antirracista nos Estados Unidos. Porque, com certeza, King não achava que o fim do racismo passa pela total submissão dos negros perante os brancos, o apagamento total de sua cultura e suas tradições.

Passou apenas um mês entre Lumena e as carreatas da morte promovidas por brancos malucos em um domingo no qual as mortes por covid-19 beirava a casa de 3 mil pessoas por dia – e que têm se repetido desde então. Como seus descendentes vikings (contém ironia), esses brancos brasileiros só não pegaram seus tacapes para irem ao protesto porque seus SUVs são armas muito mais mortíferas. Também não pegaram o chicote para açoitar a população de baixa renda, forçando-a a trabalhar, porque detêm uma ferramenta muito mais eficiente: os chefes de RH de suas empresas, sempre prontos a assinarem algumas demissões.

Do outro lado, os pobres – sua maioria de pretos e pardos – não têm quilombos para fugir e organizar uma luta contra os senhores desse país. Vivem matando um leão por dia para garantir sustento para suas famílias – alguns estão tão inebriados pela polarização nacional que até apoiam o descalabro, outros morrem em seus lares, vítimas de chacinas sem sentido.

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Durante esses 11 meses em que Elástica está no ar, debatemos a fundo questões raciais das mais diversas. Mas, até agora, nunca havíamos olhado para a razão central desse problema: a branquitude e suas estruturas de poder. Para iniciar uma série de debates sobre o tema, conversei com a pós-doutora em psicologia e especialista em branquitude Lia Vainer Schucman, uma das vozes mais incisivas sobre o tema aqui no país. Autora dos livros Entre o Encardido, o Branco e o Branquíssimo. Branquitude, Hierarquia e Poder na Cidade de São Paulo e Família Inter-Raciais. Tensões entre Cor e Amor, além de ensaísta profícua, Lia coloca na mesa temas espinhosos, que falam sobre psique coletiva, dominação e estruturas de poder no século 21. Confira:

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(intervenção sobre gravura de Jean-Baptiste Debret / Arte/Redação)

Quero começar nossa entrevista com uma provocação. Quando foi que você se percebeu branca?
Não existe memória verdadeira, e sim uma produção de significados sobre o passado. Mas, tenho certeza que começou muito cedo, aos 4 ou 5 anos de idade. Eu morava em um sítio em Itapecerica da Serra [no interior de São Paulo] e todas as pessoas nos arredores eram negras. A gente se percebe em relação a alguém, né? Lembro de uma senhora, uma mulher que trabalhava do lado de casa, e ela falava que um dia seria branca como eu. Já tinha uma coisa muito positiva na brancura. Não tinha uma crítica, mas ouvia isso desde muito cedo. E eu já era atenta, mas o porquê eu não sei.

Teve um momento muito radical em perceber não só a diferença, mas que essa diferença é muito brutal. Estava com 16 anos, voltando de uma quermesse com um amigo, um negro que era professor de capoeira. Ele queria me acompanhar porque já era tarde. Dois homens brancos nos assaltaram, levaram minha bolsa. Ele deu um golpe de capoeira para pegar minha bolsa, e a polícia fazia ronda por perto. Nós fomos para a delegacia como se tivéssemos roubado os dois homens brancos. Meu colega ficou preso e eu consegui ligar para minha mãe. Ela foi me buscar, o delegado não estava nem aí pra mim. Fui liberada, mas minha mãe disse que só iríamos embora com meu amigo. Saímos só de manhã, e ele tinha sido espancado. Nós fomos roubados, fomos para a delegacia, ele foi preso e eu fiquei de fora. Estava clara a radicalidade na diferença.

Foi isso que fez você querer estudar o tema na academia?
A sensibilidade que vem muito cedo, mas a academia foi uma mistura de coisas que foram acontecendo. Eu sou judia, e o que me interessava muito era a identidade judaica. Queria saber porque alguém era judeu mesmo se não praticasse o judaísmo, como eu. Entender porque eu era judia, se não tinha nenhuma diferença dos meus colegas de escola. Fui fazer um mestrado sobre identidade judaica, perguntando para judeus sem judaísmo por que eles eram judeus. As respostas eram variadas, desde porque comiam bolinho do Pessach na casa da avó, por causa do afeto, das histórias. Mas muita gente me respondia que não tinha como não ser. Aí fui investigando o que era esse não ter como não ser. Todos carregavam muitos estereótipos, até por questões simples, como o sobrenome. Então, queria entender quem é esse outro que consegue denominar que alguém é judeu, ou qualquer outra coisa. No doutorado, direcionei isso a um problema que fosse forte no Brasil, não somente uma questão pessoal. Então, quem é que diz que o outro é negro no Brasil? Cheguei na pergunta via identidade judaica, a problemática do “não tem saída, alguém me diz que eu sou”, e joguei a luz sobre um grupo que estivesse sob dominação racial no Brasil.

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Foi aí que caí nos estudos de branquitude, no entendimento de como se forma um grupo que tem, entre milhões de características de dominação – seja econômica, jurídica, política –, o poder de produzir subjetividade, que é a branquitude. E aí, entendo que a branquitude não é um contraponto apenas à negritude. Ela é um contraponto a todos os outros grupos racializados dependendo do contexto histórico em que se está. Na Austrália, a branquitude se contrapõe aos aborígenes. Na Califórnia, aos mexicanos. Judeus e árabes não entram no grupo de brancos da Europa, mas entram no Brasil. Então, depende da história e do local.

Um ponto de partida para entender a branquitude, algo que você cita muito em seus trabalhos, é como o branco é sempre individualizado, enquanto populações que sofrem racismo – aqui no Brasil, negros e indígenas – são sempre coletivizadas. Como funciona essa lógica no inconsciente coletivo da população brasileira?
O que é a ideia de raça? É uma ficção onde se acredita que pessoas de um grupo, por pertencerem a ele, têm características morais, intelectuais, estéticas, iguais ou parecidíssimas. A partir daí, você pode classificar essas pessoas como confiáveis, moralmente adequadas etc. O processo de racialização pressupõe a ideia de raça. O exemplo do Big Brother é muito forte, quando se diz que aquelas pessoas estão fazendo mal para a causa negra. Vi milhões de falas sobre eles estarem lá dentro se matando, de uma necessidade de reconstrução da militância. O Big Brother sempre teve um monte de brancos se matando. Nem quando branco fala de raça… se o Arthur falasse que é white power, se um branco se afirma como nazista, os brancos não carregam isso. A ideia de que toda a pessoa do grupo representa o grupo como um todo é um dos processos de racialização do outro, que é próprio da branquitude. O outro é um grupo, o outro é racializado, e nós somos indivíduos, cada um representado com humanidade. Mas, o que está na chave de tudo isso é que todos os grupos são particulares e o branco se pensa e se olha como universal como representante da humanidade. Ele carrega a noção de humano, enquanto um africano carrega a ideia de um africano, um asiático de asiático, e por aí vai.


“O que é a ideia de raça? Pessoas de um grupo, por pertencerem a ele, têm características morais, intelectuais, estéticas, iguais ou parecidíssimas. A partir daí, você pode classificar essas pessoas como confiáveis, moralmente adequadas etc. O processo de racialização pressupõe a ideia de raça”

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(intervenção sobre foto de arquivo / Biblioteca do Congresso Americano/Redação)

Essa questão do Big Brother é curiosa porque, enquanto o branco olha para os outros como radicais, recentemente houve manifestações de lunáticos pró-Bolsonaro na rua, e então dizemos que eles são só um grupinho de fanáticos. Não nos colocamos nesse espelho…
O que falta para o branco é espelho [risos]. Há uma inconsciência racial muito grande no branco, carregada pela ideia de que ele não tem raça. Ninguém faz perguntas do tipo: “você, como branco, o que acha do Bolsonaro?” Não faz sentido, não soa bem. Mas, perguntam: “você, como negro, o que acha do Obama?”. Falta uma ideia racializada para o branco, de que ele também é um grupo particular.

Um dia desses estava dando uma aula sobre [Frantz] Fanon, e uma pessoa me falou que era muito interessante para pensar o negro. Então, questionei: “você lê [Pierre] Bourdieu para pensar o branco?”. Então, os intelectuais brancos serviriam para pensar o mundo, enquanto os intelectuais negros serviriam para pensar o negro. Não! Eles também servem para pensar o mundo. Ou todo mundo é particular ou todo particular é universal. Tudo que vem do branco é uma particularidade pensada como universal. A forma de conhecimento, a academia, tudo o que foi construído pela Europa é pensado para a humanidade. Mas a medicina indígena é para o indígena, a medicina oriental é para o oriental, e enquanto nós somos para a humanidade. Isso causa um disparate que não faz com que a gente perceba que um monte de gente branca na Avenida Paulista dentro de seus carros gritando para não ter lockdown, para que os negros peguem quatro ônibus para trabalhar e morrer de covid, tem a ver com raça. Falta muita consciência racial para o branco.

E aí tudo de bom do branco é universal, e só as coisas ruins são reservadas ao indivíduo.
O branco é blindado. No meu doutorado, eu perguntava qual continente era o berço da civilização, e a resposta era sempre a Europa, enquanto a barbárie era sempre a África. As pessoas ainda acham a Europa chique. Um continente responsável pela Inquisição, pelas Cruzadas, por quase todas as colonizações, pela divisão da África, pela colonização negra, escravização e genocídio indígena, e o genocídio de seis milhões de judeus. Eles fizeram uma máquina que se tornava uma câmara de gás. E, na verdade, não dá nem para falar de Europa. São cinco países. Não tem história da Polônia invadindo outros continentes. São cinco países que invadiram o mundo, e eles são blindados. Inglaterra, França, Alemanha são vistos como berços do mundo, lugares civilizados. É um disparate.

O maior poder da branquitude é enunciar a história. Se formos pensar quem são os outros, os humanos, nomear as coisas, essas coisas estão no nosso tecido social de fato. Nós contamos a história dos brancos a partir da Grécia Antiga. Sabemos o que foi a Renascença, na Itália, os feudos da Idade Média. Até chegar na história da colonização, aprendemos várias coisas sobre a Europa. Mas, o que aprendemos sobre os indígenas ou sobre as populações africanas nesse tempo antes da colonização? A gente começa a história dos africanos a partir do momento em que eles foram escravizados. Não aprendemos o reino Iorubá, os Bantus, assim como não aprendemos 365 culturas indígenas. Mas aprendemos que os brancos são italianos, portugueses, alemães, espanhóis, ingleses, franceses. Então, toda a diversidade humana cabe nos brancos, enquanto as diversidades indígenas e africanas são subtraídas. Elas são vistas como uma homogeneidade.

A branquitude se manifesta de formas diferentes nos homens e nas mulheres? Por causa do excesso de sexismo no Brasil, as mulheres brancas teriam mais empatia a causas raciais do que os homens brancos?
O que percebi na minha tese é que os homens e as mulheres almejam coisas diferentes da branquitude. As mulheres querem a própria brancura, as características próprias da parte estética, como o nariz e a boca finos, o cabelo liso, enquanto os homens almejam o poder político e econômico. Tanto que muitos homens que estão naquele limiar racial, em que se usam terno e gravata são brancos, mas se estiverem na periferia de shorts viram pardos, almejam o poder político e econômico porque o corpo não é tão marcado pela branquitude como para as mulheres, porque isso tem a ver com sexismo.

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“O maior poder da branquitude é enunciar a história. Se formos pensar quem são os outros, os humanos, nomear as coisas, essas coisas estão no nosso tecido social de fato. Nós contamos a história dos brancos a partir da Grécia Antiga. Sabemos o que foi a Renascença, na Itália, os feudos da Idade Média. Até chegar na história da colonização, aprendemos várias coisas sobre a Europa. Mas, o que aprendemos sobre os indígenas ou sobre as populações africanas nesse tempo antes da colonização?”

O que eu vejo é que tem muito mais mulheres brancas estudando e tendo uma crítica à branquitude do que homens brancos. Talvez, o fato de ser mulher possa facilitar o entendimento da dominação. Mas, nos meus 40 anos de vida, cheguei a conclusão de que nada garante nada. A quantidade de judeu racista, negro antissemita e mulher machista que eu conheço me levam a crer que não é o fato da experiência que pode te possibilitar a empatia com o outro, e sim um trabalho que parte por outros caminhos. Não é experimentar a dor que te leva a ter empatia com a dor do outro. Inclusive, acho que a pessoa pode muito bem não conseguir enxergar a dor do outro porque a dela é tão grande que a deixa presa, traz uma ferida narcísica tão grande que a torna incapaz de sair daquilo que é próprio dela. A dor daquela pessoa se torna a maior dor do mundo.

A opressão de uma mulher branca feminista de classe média não é comparável com a situação da mulher negra e pobre. A gente tem mulheres brancas ocupando o Brasil todo profissionalmente. É por isso que obviamente vai haver um feminismo negro. A mulher branca dependeu a liberdade dela pelas mulheres racializadas. Como é que uma mulher branca que tem filhos conseguiu sair para trabalhar 40 horas por semana? Por causa do sexismo, está quase que toda a responsabilidade dos filhos sobre a mulher. Mas, todas as mulheres brancas na história que conseguiram trabalhar no Brasil dependeram de outras mulheres, em sua maioria das mulheres negras trabalhando para elas e ganhando muito pouco. Então, quando a questão racial chega para as mulheres brancas de classe média, é um rompimento com aquilo que ela acredita. As mulheres que conseguiram trabalhar há 60 anos eram brancas, porque as negras estão trabalhando há 500 anos.

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(intervenção sobre quadro de Victor Meirelles/Redação)

O Brasil vive uma situação de racismo estrutural, quando as estruturas de poder não são acessadas pelas populações minoritárias, mas você fala também de racismo institucional. O que é esse racismo institucional?
As instituições são quase todas brancas. Vamos pensar no tamanho e no porte que é o sistema jurídico no Brasil. Ontem [no dia anterior a essa entrevista] teve um caso que me chocou muito aqui em Santa Catarina: um homem branco matou as três esposas, e está solto. Ele ficou preso por três meses. Obviamente, o fato do juiz ser um homem branco, e quase todos os juízes serem homens brancos, influencia no caso, por mais que as pessoas queiram dizer que não. Há um lugar de identificação com aquele sujeito. “Esse sujeito poderia ser eu, não vou condená-lo por feminicídio.” Então, o fato de todas as instituições serem brancas produz mais racismo além do racismo que é o fato da instituição ser totalmente branca.

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Assim, o racismo institucional é a incapacidade de uma instituição promover igualdade racial, tanto dentro dela própria, mas também ao serviço que ela oferece, como justiça. Então, ela tem oferecido justiça igualmente para brancos e para negros? 30% das pessoas negras encarceradas não foram julgadas. Quantas pessoas brancas de classe média que você conhece estão presas sem serem julgadas? Quase todas as famílias negras têm um integrante preso. O que é isso no laço social? Ficar esperando no Natal, ver a foto do filho magro, crescer e não ver o filho, visitar o pai na cadeia desde pequeno. Tem gente que demora quatro anos para ser julgado. Então, além da instituição ser totalmente branca, o serviço que ela oferece é o racismo institucional.

“Não é que temos culpa pelos nossos antepassados. Realmente não temos culpa pela colonização e todas as outras coisas horrorosas. Mas somos beneficiados, e isso não seria um problema se a gente parasse de distribuir esse benefício apenas entre os nossos. Essa lógica da distribuição de benefícios que vai gerando esse ciclo sem fim do racismo. Por isso, a primeira reação é negar”

E isso não acontece somente no setor público, certo?
Agora em março, dei uma palestra em uma grande multinacional, para executivos de toda a América Latina. O CEO para as operações do continente não era brasileiro. Falei por uns 20 minutos sobre racismo institucional e a inclusão de negros no mercado de trabalho. Ao final, ele me disse que, no final das contas, o que importa é Wall Street. As metas vão ser vistas pela quantidade de receita que geramos, ninguém vai medir a inclusão. E me disse, bem diretamente, que queria saber se essa ação lhe daria receita.

Fiz o discurso afirmativo de inclusão, de imagem, do sentimento de “se não me vejo, não compro”, disse que enviaria diversos artigos que comprovam o aumento de receita, mas também falei que ele, como uma pessoa branca, dentro de uma instituição branca rica, pensar se quer ou não incluir pessoas negras por causa da questão econômica, isso sim era racismo. Porque o racismo é justamente o poder econômico e o poder de decisão política na mão dos brancos. Não é outra coisa. Não é não gostar de negros. O poder de ser ou não incluído está na mão dos brancos. O fato de estar na mão dos brancos o poder político e as decisões é o racismo.

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Muitas vezes, quando um branco é confrontado do seu racismo, a reação varia entre a surpresa amena e a agressividade perigosa. Como a psique do branco funciona quando o assunto é racismo?
Acho que tem uma incapacidade quase cognitiva de não reconhecer. Tem burrice, má-fé, mas tem uma defesa narcísica, que é mais ou menos a seguinte: a partir do momento que eu reconhecer que o lugar que ocupo tem a ver com o fato de que sou branco, então significa que talvez eu não seja tão bom assim. É tipo: “descobriram meu segredo.” Quando você anuncia o racismo como estrutura, também anuncia que a pessoa ganhou a corrida, mas correu sozinho. Não se trata de um super corredor, e sim porque as pessoas que concorreram com ela foram presas no meio do caminho, botaram obstáculos etc.

O fato de você chegar em uma instituição e falar que um dos motivos que eles estão lá é porque são brancos é um furo naquilo que a pessoa acredita sobre si mesmo, que as primeiras reações são justificar que estudaram, trabalharam. E é verdade. Mas esse mérito vem por causa das oportunidades que você agarrou. E essas oportunidades só são dadas para os brancos.

Então, quando essa lógica cai, fica uma coisa muito escancarada. Não é que temos culpa pelos nossos antepassados. Realmente não temos culpa pela colonização e todas as outras coisas horrorosas. Mas somos beneficiados, e isso não seria um problema se a gente parasse de distribuir esse benefício apenas entre os nossos. Essa lógica da distribuição de benefícios que vai gerando esse ciclo sem fim do racismo. Por isso, a primeira reação é negar. A pessoa reconhece o racismo mas nega que tenha a ver com ela. Esse é o mais comum. E a outra é muita violência.

Os brancos têm horror de ser nomeados de brancos, porque são indivíduos. É o Artur, é a Lia. Têm horror de discutir a branquitude, o que chamam de identitarismo, as pautas identitárias. Mas, o que é isso? Todo mundo se constrói, as identidades se constroem, dentro da estrutura. As identidades também são construídos dentro de uma estrutura racista. Não tem como os negros não serem identitários, porque a identidade está colocada sob a ideia de raça.

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Por outro lado, o Brasil é um país extremamente mestiço, e por aqui muitos pardos se consideram brancos. De onde vem essa não identificação com a mestiçagem e às identidades negras, e como isso também contribui para o racismo?
Existe uma mestiçagem genética, a qual todas nós temos. Não existe pureza. A mestiçagem genética nada nos diz sobre o discurso da mestiçagem. Pode ser que tenha negros na sua família, mas você é branco. A raça no Brasil é via fenótipos. Dessa genética pode sair qualquer fenótipo: branco, branquíssimo, negro de pele escura, negro de pele clara. A questão é que a mestiçagem é um discurso que não responde à identidade genética. O branco que é mestiço… eu tenho um amigo que é neto de alemães e negros, que é branco de olhos azuis. Então ele é branco. Mas, outro amigo também tem uma avó alemã e um avô alemão, e ele é negro. A mestiçagem está igualzinha nessas duas pessoas e de quem descendem. Qualquer mestiçagem genética pode dar uma variante absoluta de pessoas. Mas, temos um tipo de corpo que é racializado. Esse tipo de corpo racializado é sempre visto como pardo ou preto. O mestiço que vira branco, ninguém chama ele de mestiço.


“Os brancos têm horror de ser nomeados de brancos, porque são indivíduos. É o Artur, é a Lia. Têm horror de discutir a branquitude, o que chamam de identitarismo, as pautas identitárias. Mas, o que é isso? Todo mundo se constrói, as identidades se constroem, dentro da estrutura. As identidades também são construídos dentro de uma estrutura racista. Não tem como os negros não serem identitários, porque a identidade está colocada sob a ideia de raça.”

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(Yuri Ferreira/Fotografia)

Temos uma ideologia de embranquecimento. Porque o mestiço branco não é visto como o mestiço. Porque ele já chegou onde a ideologia do embranquecimento se sustenta, chegou onde “deveria chegar”. Porque a mensagem era que a mestiçagem tornaria todo mundo em branco nesse país. Agora, todas as outras pessoas que ainda não se tornaram fenotipicamente brancas por esta ideologia são vistas como mestiças, pardas ou pretas.

Por que muitos não se reconhecem como negros? Porque temos a ideologia de que eles estão chegando no branco. Se temos um país inteiro que está dizendo: “você está quase perto de nós”, por que se identificaria como aquilo que é visto como negativo na nossa sociedade? A minha pesquisa de pós-doutorado foi sobre famílias inter-raciais. Todas as mulheres contaram que a gravidez foi o momento mais tenso, porque esperava-se que os filhos nascessem claras, para corresponderem à ideologia do embranquecimento.

Então, temos que pensar a mestiçagem não como genética, mas como um discurso que serviu para dizer que não temos brancos e negros, que somos todos mestiços, mas em um país em que as pessoas são brancas ou negras. Se eu te perguntar quem é uma pessoa mestiça no Brasil hoje…

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(intervenção sobre gravura de Jean-Baptiste Debret / Arte/Redação)

Vou ficar no mundo pop. Neymar.
Neymar, Camila Pitanga. São sempre pessoas com fenótipos negros. Que você reconhece que tem uma origem negra. Pessoas que têm origem negra mas que você não reconhece à primeira vista não são mestiços, mesmo que tenham essa origem. São pessoas que têm um mínimo de sinal de origem africana. O que importa é que o corpo delas marquem essa origem.

O mais difícil de entender da raça é que ela é uma ficção, enquanto sempre achamos que tem algo de real. Que existem um negro verdadeiro e um branco verdadeiro. Não existem. É uma ficção que é contada a partir da história do lugar. Na Inglaterra, uma mulher como Meghan Markle é obviamente negra. As pessoas são brancas de olho azul. Você não é branco na Inglaterra, você é latino.

“Pessoas que têm origem negra mas que você não reconhece à primeira vista não são mestiços, mesmo que tenham essa origem. São pessoas que têm um mínimo de sinal de origem africana. O que importa é que o corpo delas marquem essa origem”

Quando fui para os Estados Unidos, descobri que eu era others/non-white. Eu morei lá, e me classificaram como others/non-white. Um dia, estava nos na rodoviária, e para mim foi a experiência que me fez entender raça. Ninguém pega ônibus na Califórnia. Ou anda de carro, ou de trem. Só pega ônibus quem é pobre ou latino. Eu estava conversando com uma pessoa sobre não haver negros ali, e um rapaz que estava do lado me disse que ninguém era branco ali. Eram latinos, mexicanos, cujas peles eram brancas. Mas ninguém era branco para os americanos naquela rodoviária. Então, é uma ficção que as pessoas aprendem.

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O Neymar não é negro em alguns países africanos. Pra nós, ele é. E pode ser que para negros de pele bastante escura ele não seja, e pro branquíssimo ele seja. Porque depende da relação, e da relação de poder.

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(intervenção sobre gravura de Jean-Baptiste Debret / Arte/Redação)

Sempre que um discurso ou ação afirmativa do movimento negro chegam à grande mídia, como o Black Lives Matter a reação dos brancos é de afirmar que há uma radicalização em curso. Por que o branco se sente tão ameaçado pelos movimento negro, a ponto de não conseguir absorver as mensagens transmitidas?
O medo branco se caracteriza pela autodeterminação dos negros. Quando um negro se torna uma ameaça? Quando essa pessoa autodetermina o seu destino. Você já chegou a pensar no absurdo que é um monte de branco falando que o movimento negro está errado. O movimento é negro. Se eles quiserem se explodirem com bombas, é um movimento negro autodeterminação negra. O que importa a sua opinião?

O que é difícil para as pessoas brancas é chegar à conclusão de que não é o lugar delas dizer se eles estão certos ou errados. Porque o negro não assusta quando está no lugar de subalternidade. Nunca é algo que dá medo para o branco. Uma empregada doméstica negra de cabeça baixa não é uma ameaça. Exatamente porque se naturalizou que aquele é o lugar onde ela deveria estar.

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Ainda falando nisso, porque a sociedade entra em convulsão social – ainda que de maneira pontual – quando George Floyd morre, mas não se comove com o genocídio negro cotidiano que acontece aqui no Brasil?
Tenho uma teoria de que o branco brasileiro é tão colonizado que ele tem ciúmes do branco progressista norte-americano. Tivemos o caso do Carrefour, no Dia da Consciência Negra, e isso já foi esquecido. Sabemos o nome do George Floyd, mas esquecemos o nome do Beto. A ideia de se sensibilizar com o negro norte-americano tem três sintomas: dizer que o racismo deles é pior, e aí nos livramos de lidar com o nosso racismo; recoloca a ideia de que a escravidão por aqui foi mais branda; e que somos colonizados. Então, se os brancos norte-americanos estão reclamando da morte do George Floyd, é legal que a gente reclame aqui, mas do George Floyd.

O Brasil é um dos únicos países que têm um racismo tão radical e que não têm organizações de brancos antirracistas. Desde a luta por direitos civis nos E.U.A existem brancos aliados. Na África do Sul, tiveram brancos organizados aliados contra o Apartheid. Muitos judeus se juntaram com os movimentos civis, inclusive na África do Sul. Aqui, temos uma hierarquia de classes tão radical, que, por brancos de grupos sociais diversos estarem nas classes altas, não temos uma aliança. Não temos brancos antirracistas organizados, somente pessoas. Não temos uma organização de brancos antirracistas com quem o movimento negro pode contar. Tem se construído nos últimos anos um mínimo, mas não tem uma história que o movimento negro pode contar de um grupo de brancos antirracistas em sua aliança.

“O Brasil é um dos únicos países que têm um racismo tão radical e que não têm organizações de brancos antirracistas. Desde a luta por direitos civis nos E.U.A existem brancos aliados. Na África do Sul, tiveram brancos organizados aliados contra o Apartheid. Muitos judeus se juntaram com os movimentos civis, inclusive na África do Sul. Aqui, temos uma hierarquia de classes tão radical, que, por brancos de grupos sociais diversos estarem nas classes altas, não temos uma aliança. Não temos brancos antirracistas organizados, somente pessoas. Não temos uma organização de brancos antirracistas com quem o movimento negro pode contar”

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(intervenção sobre gravura de Jean-Baptiste Debret / Arte/Redação)

Você acredita que estamos chegando em um momento agudo de racismo no Brasil? A internet, os comunicadores extremistas, as perdas de direitos e de renda causadas pela pandemia são agravantes?
Acho que não temos um recrudescimento do racismo, mas caíram as máscaras. Inclusive, acho que estamos bem melhor hoje do que há 10 anos. Acho que isso é uma reação branca pelos negros estarem na universidade e em outros lugares que não eram determinados pelo racismo. É uma reação pela autodeterminação negra, pela tomada de decisões, por usar o cabelo que quiser. Mas, acho que para quem nasce negro hoje no Brasil, essa pessoa tem mais representatividade, mais referências a quem olhar. Eu tenho um filho negro. Ele já consegue nesse país olhar para pessoas negras sendo valorizado, ter referências positivas na negritude. Tenho muitos alunos negros com a cabeça erguida. Eles não vão voltar para a senzala. Então, é uma reação pelo fato de que melhorou.

O conservador grita para conservar o que tinha. Eles não precisavam conservar nada há 20 anos. Imagina naquela época a “bicha preta”? A gente tem um movimento hoje nos estádios de futebol que chamar as pessoas de gay não é mais legal. O movimento é de conservar o que é está na cara que não existe mais. Eu me formei na universidade e não tive um colega negro. Hoje, sou professora na mesma universidade na qual eu me formei, e não tenho nenhuma turma que não tenha pelo menos alguns alunos negros, e que estão falando disso, e que apontam o racismo dos professores, ainda apoiados por outros brancos que confirmam o racismo.

Como quebrar cotidianamente o racismo no Brasil e caminhar para um futuro melhor?
Como fazemos o antirracismo virar? Porque não ser gostado é uma coisa. Você tem trabalho, vai no hospital, tem saúde, tem acesso aos recursos. Existe antissemitismo? Existe. Mas isso não implica no meu acesso aos direitos. Eu posso escolher não andar com os antissemitas e acabou o problema. Um país que promove direitos deveria dar direitos iguais para os sujeitos. Combater o racismo tem que estar não no combate apenas do preconceito racial, nas relações individuais, mas no acesso aos bens públicos desse país.

Para mim uma parte importante do combate ao racismo tem a ver com inserção no mundo do trabalho. Todas as instituições deveriam ter cotas. Deveria ser um espelho do município. Se o município tem 20% de pessoas negras, esses mesmos 20% seriam de negros na sua instituição. E, em todos os cargos. Não adianta estar na limpeza. E outro, que é mais radical, é a acabar com a Polícia Militar, que promove o genocídio de pessoas negras. Não existe combater o racismo com essa polícia.

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