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Nunca se desejou tanto o Carnaval de 1919

Historiadores e escritores relatam a festa épica que ocorreu ao fim da epidemia de ‘gripe espanhola’, que transformou o Rio de Janeiro da época

por Bruna Santamarina Atualizado em 20 jun 2020, 15h46 - Publicado em 1 jun 2020 08h00

Lembro-me de um vizinho perguntando: — ‘Quem não morreu na espanhola?’. E ninguém percebeu que uma cidade morria, que o Rio machadiano estava entre os finados. Uma outra cidade ia nascer. Logo depois explodiu o Carnaval. E foi um desabamento de usos, costumes, valores, pudores.” O relato de Nelson Rodrigues, no livro A Memória Sem Estrela, é mais que mera ficção. Retrata a dura realidade vivida durante a epidemia de gripe espanhola que assolou o Rio de Janeiro no final de 1918. Estima-se que cerca de 600 mil pessoas foram acometidas pela doença e mais de 15 mil morreram, colocando em risco rapidamente boa parte da população da cidade à época, que era de 1 milhão de pessoas.

Algumas atividades foram paralisadas por completo, incluindo serviços públicos, cinemas, teatros, entre outros locais de aglomeração pública. Informações falsas sobre possíveis remédios milagrosos, como limão e galinha, faziam os produtos desaparecerem dos mercados ou serem encontrados somente a preços inflacionados e abusivos. Bastava alguém falar que certo ingrediente fazia bem, que o item passava a ser consumido sem critério. As informações, que guardam similaridades ao período atual pelo qual passa o mundo com a pandemia de coronavírus, constam no artigo O Carnaval, a Peste e a ‘Espanhola’, do historiador Ricardo Augusto dos Santos, pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz, unidade da Fiocruz dedicada à história, ao patrimônio cultural e à divulgação das ciências e da saúde. No texto, ele conta sobre o Carnaval de 1919 e compara o período da “gripe espanhola” no Rio de Janeiro de 1918 ao da peste na Europa do século XIV.

“Meia-noite vai bater / Minha sogra está doente / Vou interná-la num hospital / Dando-lhe o chá bem quente”

Marchinha de Carnaval

“O processo epidêmico de 1918 foi muito violento, mas relativamente rápido. No Rio de Janeiro, a gripe chegou em setembro, teve uma violência absurda por dois meses e depois foi caindo. Ao final de novembro, as pessoas já estavam voltando ao normal. Ainda não sabemos como será com o coronavírus, quanto tempo vai demorar até voltarmos ao normal. E, mais do que isso, que normal vai ser esse?”, se questiona Ricardo Augusto dos Santos.

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Tão rápido quanto a doença chegou em 1918, ela desapareceu. Mas a cidade que ali jazia não era a mesma. Quando parecia novamente seguro sair às ruas, o carioca esbarrou logo com o Carnaval. Era início de 1919. Teria sido a mais libertina e mais despudorada folia jamais registrada em terras cariocas, “de um erotismo absurdo”, conforme escreveu Nelson Rodrigues. “Desde as primeiras horas de sábado, houve uma obscenidade súbita, nunca vista, e que contaminou toda a cidade. (…) Nunca se desejou tanto como naqueles quatro dias.”

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(Herbert Loureiro/Ilustração)

Cautelosas, as pessoas começaram a sair de casa, marcadas pelo contexto de medo e alegria. “Pesquisando em jornais os dados sobre a gripe que matou milhares de pessoas, encontramos inúmeras músicas ‘brincando’ com os fatos da dolorosa epidemia, além de várias notas sobre a criação de blocos carnavalescos e convites para bailes fazendo alusão à gripe. Parece que os cariocas não se intimidaram e caíram na farra”, informa o artigo de Augusto dos Santos. Uma das marchinhas cantadas no Clube dos Democráticos, um dos mais reconhecidos bailes de Carnaval do Rio na época, conforme registrado na Revista Careta de 11 de janeiro de 1919, já citava a “gripe espanhola” com o bom humor que só a festa momesca pode proporcionar: “Não há tristeza que possa / Suportar tanta alegria / Quem não morreu da Espanhola / Quem dela pode escapar / Não dá mais tratos à bola / Toca a rir / Toca a brincar.”

Até o chamado “chá da meia noite” virou carro alegórico. Conta a lenda que, durante o período da “gripe espanhola” no Rio, a Santa Casa de Misericórdia distribuía bebidas envenenadas a doentes terminais na calada da madrugada, com a intenção de abrir novos leitos. O caso, é claro, nunca foi comprovado, mas a brincadeira não passou batida na folia seguinte. “Meia-noite vai bater / Minha sogra está doente / Vou interná-la num hospital / Dando-lhe o chá bem quente”, dizia uma das marchinhas da época, do bloco “Miséria e Corda”, conforme publicado no jornal O Correio da Manhã, em fevereiro de 1919.

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Foi nessa época que nasceu o Cordão da Bola Preta, mais antigo bloco carnavalesco do Rio de Janeiro ainda em atividade, fundado em dezembro de 1918, por 18 boêmios desertores do Clube dos Democráticos. O primeiro Carnaval da turma foi justamente o de 1919. O líder da fundação, Álvaro Ramos de Oliveira, atendia pelo apelido de Kaverinha, por ter sido um dos doentes infectados pela gripe espanhola. “O líder da fundação do Bola Preta foi acometido pela gripe espanhola e, quando reapareceu, estava tão magro, em pele e osso, que parecia uma caveira. Como, na época, era muito comum o pessoal do meio de Carnaval ganhar apelido, ele foi chamado de Kaveirinha. Pegou”, conta Pedro Ernesto, presidente do Cordão da Bola Preta. “Com certeza, vai haver uma grande euforia e acredito que vai ser não só no meio das festas, como também a nível econômico, como se a gente estivesse despertando de um mundo velho e indo para um mundo novo”, opina o folião.

Outros cronistas também recorreriam ao período em seus textos, caso de Ruy Castro: “Quem não morreu sentiu-se no dever de celebrar a vida, brincando o Carnaval como nunca antes. A cidade saiu em peso para os corsos, ranchos e batalhas de confete. Os pierrôs e caveiras não se contentavam em pular — invadiam as casas e arrastavam os renitentes para a folia. Pela primeira vez, o samba superou os outros ritmos nas ruas.”

“O líder da fundação do Bola Preta foi acometido pela gripe espanhola e, quando reapareceu, estava tão magro, em pele e osso, que parecia uma caveira”

Pedro Ernesto, presidente do Cordão da Bola Preta

Os jornais documentaram a alegria incomum que tomou conta da cidade. Teria sido um dos mais animados Carnavais que o Rio teve: bailes, batalhas de confete e incontáveis blocos espalhados pelos bairros. “Ao que parece, houve uma dramatização carnavalesca da situação que os vitimara. Tudo era motivo de alegria e riso”, escreveu o historiador, em seu artigo. “Passado todo esse período, será que vai acontecer no Rio de Janeiro novamente essa experiência libertadora? Depois de períodos semelhantes de fome, guerra, epidemias, há um momento explosivo de nascimentos. Não posso prever. Mas confesso que fico observando para saber se vamos ter uma repetição disso”, conta ele.

Fato é que, em 1919, os habitantes do Rio de Janeiro, que haviam sobrevivido à espreita da morte pela “gripe espanhola” que assombrava as famílias, trataram bem rápido de exorcizar seus demônios com o que parece ter sido a mais animada das festas dionisíacas.

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