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Mistura boa?

A combinação perigosa e prazerosa de sexo e drogas tem nome: chemsex ou chemical sex. Mais comum entre homens gays e bissexuais, ela precisa ser discutida

por Luisa Alcantara e Silva Atualizado em 26 jan 2021, 12h35 - Publicado em 15 jan 2021 01h16

João* chegou há dez horas a uma boate em São Paulo e já transou com 20 homens. Com alguns, foi ativo; com outros, passivo. A seu lado, outros jovens fazem sexo quase sem parar. A pausa é só para potencializar a experiência com alguma droga. Seja com poppers, vendido como aromatizador de ambiente em alguns países, com GHB, a mais famosa entre os frequentadores do local, ou com outras, todos ali têm algo em comum: são adeptos do chemsex. O nome é a combinação das palavras chemical sex, ou sexo químico em português.

A prática, bastante comum entre homens gays e bissexuais na Europa, começa a se espalhar no Brasil. As grandes cidades, como São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador, têm algumas festas onde se drogar e transar com várias pessoas são sinônimos, mas o chemsex também pode ser feito a dois. É como Gabriel Souza, farmacêutico de 28 anos, prefere. Quando começou a praticar, há dez anos, ele nem sabia o que era. “Só fui conhecer o termo chemsex quatro anos depois, quando morei em Barcelona”, conta.

A primeira experiência do farmacêutico nesse universo foi no início de sua vida sexual com homens – antes, ele já havia transado com algumas mulheres. Gabriel havia saído com um cara mais velho duas vezes e, no terceiro encontro, o parceiro perguntou se ele queria experimentar o GHB, que em altas doses se torna o “boa noite, Cinderela”, enquanto transavam. Sem titubear, Gabriel, que nunca havia provado nenhuma droga, entrou na onda. “Ele me passou confiança e acabei curtindo. A droga aumenta as sensações, então, fiquei com os sentidos mais aguçados, me sentindo mais sensual e com mais tesão”, lembra ele. Depois daquela vez, passou a se relacionar com frequência usando alguma substância – além de tomar GHB, fuma cristal, ou tina, alguns dos apelidos dados à metanfetamina. Atualmente, a cada dez transas, sete envolvem algum aditivo.

“A droga aumenta as sensações, então, fiquei com os sentidos mais aguçados, me sentindo mais sensual e com mais tesão”

Gabriel Souza
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(Antonio Luvs/Ilustração)

Mas, se Gabriel, assim como João, não tem medo de reagir mal à droga, muitos amigos dos dois não possuem a mesma sorte. “Não conheço ninguém que tenha morrido fazendo chemsex, mas já vi muita gente passando mal, entrando em paranoia nas sex parties“, diz o farmacêutico. Em comum, os dois garantem não ter receio, pois têm controle sobre a situação. “Quando alguém passa mal, a gente sabe que essa pessoa exagerou e eu sempre uso dentro dos meus limites, então, nunca tive nenhum problema relacionado a isso”, diz Gabriel. Para João, o fato de ele usar estimulantes, e não alucinógenos, ajuda. “Gosto de saber o que está acontecendo. Sei que é estranho dizer que tenho controle porque todo mundo fala que tem e acaba passando mal, mas eu sinto que estou no comando. E não sou irresponsável”, afirma.

Não ser irresponsável, no caso de João, significa não ingerir mais de uma dose de G, o apelido do GHB, em menos de uma hora. Mesmo se não tiver batido o efeito, ele espera. Um mililitro a mais em um curto período de tempo pode levar à morte. O negócio é tão sério que, em algumas festas que frequenta, o anfitrião faz os convidados anotarem em uma lousa o horário em que consumiram a droga para, caso misturem com outras, possam consultar a tabela e evitar uma overdose.

“Gosto de saber o que está acontecendo. Sei que é estranho dizer que tenho controle porque todo mundo fala que tem e acaba passando mal, mas eu sinto que estou no comando. E não sou irresponsável”

João*
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(Antonio Luvs/Ilustração)

Além do prazer

Para o australiano David Stuart, criador da expressão chemsex que trabalha com o assunto há décadas no Reino Unido, os praticantes de chemical sex (ele já foi um deles) estão muitas vezes simplesmente procurando aumentar o prazer do sexo. Mas há outros motivos que levam a essa busca de prazer e risco, segundo ele. “Às vezes, a experiência sexual sóbria é inibida por vergonha religiosa, homofobia social, estigmas culturais ou medo do HIV. As drogas podem ser muito úteis para desinibir uma pessoa, permitindo que o sexo seja desfrutado livremente”, explica.

Ativista em torno do chemsex, Stuart já trabalhou em parceria com órgãos públicos e ONGs em vários países e, para ele, um dos principais problemas encontrados nesse universo são as infecções sexualmente transmissíveis (ISTs), incluindo o HIV, pois muita gente faz sexo sem proteção, prática conhecida como bareback. Ele atua apoiando pessoas que buscam uma meta em relação às drogas, que pode ser não praticar chemsex “por um mês ou um fim de semana”, reduzir danos ligados ao consumo ou ter prazer no sexo estando sóbrias.

“Nossos serviços de saúde precisam ser locais que ajudem as pessoas a desfrutar do sexo sem inibições e a fazer mudanças em torno do uso de drogas e que forneçam informações de redução de danos para quem deseja continuar usando, apesar dos riscos associados”, diz ele, que vive em Londres, onde há diversos centros de apoio.

“Às vezes, a experiência sexual sóbria é inibida por vergonha religiosa, homofobia social, estigmas culturais ou medo do HIV. As drogas podem ser muito úteis para desinibir uma pessoa, permitindo que o sexo seja desfrutado livremente”

David Stuart
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Capital da Inglaterra, e do chemsex, a cidade lida com a questão publicamente há pelo menos dez anos. Um estudo do Imperial College mostrou que, entre 2014 e 2015, o número de mortes relacionadas ao uso de GHB havia crescido 119%, fato que levou os pesquisadores a concluir que “isso é provavelmente devido ao uso crescente da droga na prática do chemsex”. 

Por aqui, no Brasil, por não ser uma expressão muito conhecida fora da comunidade gay e bissexual, não há pesquisas aprofundadas relacionadas à prática nem questões sanitárias. De acordo com o Ministério da Saúde, “ainda não existem dados e nem políticas públicas sobre o assunto”. 

Quem se debruçou sobre o tema foi o advogado Belmiro Vivaldo, em sua tese de doutorado na Universidade Federal da Bahia. Um dos pontos que chamou sua atenção na pesquisa foi o fato de que muitos homens entram nesse universo para fugir das dificuldades do dia a dia. “São pessoas que não se assumem e, por isso, vivem de segunda a sexta-feira dentro daquele padrão heterossexual e, quando chega o fim de semana, querem se libertar”, diz ele. 

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(Antonio Luvs/Ilustração)

Emojis

Outro ponto interessante de sua tese foi a descoberta sobre como o chemsex se dissemina. De acordo com ele, “os aplicativos e redes sociais LGBTQ+ provavelmente teriam aumentado a visibilidade do uso de drogas e do próprio chemsex, especialmente devido à maior aceitação de existência deste comportamento e redução progressiva de sua reprovabilidade”.

Uma rápida busca no app Grindr comprova o que Belmiro afirma. Nesta, que é a rede de relacionamentos para a comunidade LGBTQ+ com o maior número de usuários no mundo, quem procura transar sob o efeito de drogas logo tem diversas opções para começar a conversar.

Assim como a seta para cima indica os ativos e a para baixo, os passivos, há códigos entre os praticantes do chems, como o chemsex também é chamado. Usuários de cristal usam o emoji do diamante, uma gotinha solitária simboliza quem curte GHB e o raio significa cocaína.

Segundo as entrevistas que fez para seu doutorado, Belmiro concluiu que esta última “foi a droga de uso quase que universal entre os participantes, sendo a favorita pelo seu preço relativamente baixo, acesso facilitado através de muitos dealers e com um controle mais assegurado de sua quantidade”.

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“Os aplicativos e redes sociais LGBTQ+ provavelmente teriam aumentado a visibilidade do uso de drogas e do próprio chemsex, especialmente devido à maior aceitação de existência deste comportamento e redução progressiva de sua reprovabilidade”

Belmiro Vivaldo

Mas, segundo o psiquiatra e psicanalista Bruno Branquinho, o cenário está mudando, pois o GHB está se popularizando também no Brasil. Ele nota isso em seus consultórios, onde a procura por tratamentos relacionados ao chemsex vem crescendo de um ano e meio para cá. 

Bruno tem cuidado de pacientes que começaram a usar drogas no sexo de forma recreativa e, com o tempo, estão com a vida toda bagunçada. “A pessoa passa três dias transando, daí, precisa de dois para se recuperar e logo volta a transar. Vira um ciclo”, explica ele. Sem dormir, sem comer ou se hidratar, o paciente passa a ter problemas de saúde. Mas, mais do que isso: problemas na vida social, pois começa a se isolar dos amigos, a se atrasar ou faltar no trabalho, e a gastar muito dinheiro, pois as drogas são caras.

Para Ana Leite, psicóloga que estuda o tema em Portugal, isso se explica pois não faz sentido abordar o risco de uma prática sem reconhecer o prazer associado a ela. E, quando fala sobre isso, Ana destaca as campanhas de saúde em alguns países, que focam apenas no risco. “As substâncias trazem experiências positivas e acaba por ser desrespeitoso que nos dirijamos a quem está tão ciente desta consequência ignorando-a por completo”, explica. 

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É o que também pensa Rico Vasconcelos, médico infectologista e pesquisador da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, que diz haver um trio protagonista de doenças relacionadas ao chemsex. Por conta do uso de substâncias psicoativas, nossa capacidade de se proteger diminui, e aí vêm as doenças. Primeiramente, sífilis, depois, HIV e, por último, hepatite C.

Por isso, quando um homem que o procura diz praticar sexo sem camisinha no chemsex, Vasconcelos busca saber se a pessoa está com alguma IST. Se o paciente tiver sífilis, mas não HIV, o médico recomenda que ele use o Prep, a profilaxia pré-exposição ao vírus. “Porque, se passar mais um tempo, haverá uma grande chance de ele se tornar soropositivo.”

Para quem não tem nenhuma das doenças, Vasconcelos recomenda a testagem. “Ao se testar com frequência, é possível detectar qualquer coisa logo no início, quando o tratamento é mais simples e, as chances de cura, maiores.”

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(Antonio Luvs/Ilustração)

Chemsex no cinema

Consciente da importância de se discutir o chemsex, o diretor paulistano Ricky Mastro, que vive há cinco anos na França, acaba de lançar um filme que tem a prática como um dos pontos centrais. Seu primeiro longa-metragem, 7 Minutos, começa com a cena de um casal se drogando enquanto transa. Os jovens são encontrados mortos e o pai de um deles sai em busca de pistas sobre a real identidade do filho na boate em que o jovem frequentava.

A própria experiência de Ricky serviu de inspiração para o trabalho, que deve ser lançado oficialmente no Brasil no ano que vem. Além de ter visto diversos conhecidos morrerem de AIDS e por problemas ligados a drogas, em 2014 um amigo seu foi achado morto com um parceiro em um quarto de hotel. “Comecei a pensar sobre o que está acontecendo na minha comunidade e, com o filme, tento mostrar que a droga existe, que ela está do nosso lado e pode, sim, resultar em morte”, diz ele. 

“Comecei a pensar sobre o que está acontecendo na minha comunidade e, com o filme, tento mostrar que a droga existe, que ela está do nosso lado e pode, sim, resultar em morte”

Ricky Mastro

As várias cenas na boate – ambiente bastante conhecido por Ricky, que trabalhou por uma década na noite paulistana – mostram a pista de dança como um espaço onde os gays podem se expressar, serem livres, de acordo com o diretor. “Infelizmente, a sociedade ainda é muito homofóbica, e a pista é o playground onde a gente se sente segura”, diz ele.

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Bruna Messina, psicóloga e neuropsicóloga do Ambulatório de Impulso Sexual Excessivo e Prevenção aos Desfechos Negativos Associados ao Comportamento Sexual (AISEP) e do Ambulatório do Programa Ambulatorial dos Transtornos do Controle do Impulso (PRO AMITI), explica que esses momentos em que o homem se liberta seriam uma forma implícita de não entrar em contato com suas questões emocionais. “Além da busca por novas sensações, há diminuição ou ausência de julgamentos, o que decorre do uso abusivo de álcool e drogas”, diz ela. Por outro lado, esse comportamento sugere que eles estariam principalmente com medo de rejeição do grupo ou em busca de autoafirmação, de uma aceitação, que, muitas vezes, não encontram em seu núcleo social.

Para David Stuart, o especialista em chemsex, a saída para essa questão não é tão complicada: “Quando os gays vivem em ambientes onde a vida gay e o sexo gay são celebrados, não envergonhados, quando crescem em ambientes religiosos que celebram o sexo gay e o amor gay, quando crescem em ambientes onde o HIV é compreendido e não envergonhado ou temido, o uso de drogas é muito menos problemático”.

“Quando os gays vivem em ambientes onde a vida gay e o sexo gay são celebrados, não envergonhados, quando crescem em ambientes religiosos que celebram o sexo gay e o amor gay, quando crescem em ambientes onde o HIV é compreendido e não envergonhado ou temido, o uso de drogas é muito menos problemático”

David Stuart
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As imagens que você viu nessa reportagem foram feitas por Antonio Luvs. Confira mais de seu trabalho aqui.

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