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A força do agora de Erica Malunguinho

A primeira deputada estadual trans do Brasil fala sobre infância, futuro, política e inspirações para transformar o presente

por Douglas Vieira Atualizado em 24 jun 2021, 16h03 - Publicado em 21 fev 2021 23h04
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(Clube Lambada/Ilustração)

m março, completa dois anos que Erica Malunguinho foi empossada como a primeira deputada estadual trans da Assembleia Legislativa de São Paulo. Mulher trans, negra e nordestina, ela existe em uma realidade desde sempre atravessada por muitos marcadores sociais e políticos. Seu corpo é alvo possível de estatísticas assustadoras de violência, seja pelo racismo, seja pela transfobia. Mas Erica entende que é muito mais do que as identidades que afirma com a própria existência, assim como acredita que sua identidade não deve ser vista como algo que apenas a explica como indivíduo. “Se a gente está falando da questão identitária, a gente não está falando do indivíduo, está falando do registro todo que o compõe, tudo que diz respeito à história, ao sistema. Falar sobre identidade é simplesmente demarcar e desvelar como se deu esse projeto de construção de desigualdades e a quem ele foi dirigido”, reflete, em conversa com Elástica no Teatro de Contêiner Mungunzá, no centro de São Paulo. Lá, a deputada ainda aproveitou para conversar um pouco com Carmen Lopes, criadora do coletivo Tem Sentimento, instalado no mesmo terreno como um projeto de geração de renda por meio da costura para mulheres cisgênero e trans em situação de vulnerabilidade. 

Os movimentos de Erica pelo mundo nunca são aleatórios – e essa afirmação vem dela. “Sempre faço um exercício de resgate, de busca, para as pessoas entenderem que as coisas não fazem parte de um acaso”, explica a mestra em estética e história da arte pela USP e criadora do Aparelha Luzia, um quilombo urbano onde fomenta debates artísticos e intelectuais sobre as urgências da sociedade. O espaço está em reforma, mas seguirá ativo paralelamente ao trabalho na política.

“Sempre faço um exercício de resgate, de busca, para as pessoas entenderem que as coisas não fazem parte de um acaso”

O que moveu a então professora na criação do Aparelha Luzia, em suas palavras, não é diferente do que a moveu na direção de uma carreira na política institucional. Erica conta que viveu cercada pelo pensamento político desde criança, filha de mãe-solo, que, assim como seu avô e sua avó, era ligada a lutas políticas no lugar em que cresceu, no bairro Água Fria, em Recife, e depois em Paulista, cidade localizada na região metropolitana da capital pernambucana.

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Assim, aos 39 anos, completados no último dia 20 de novembro (sim, ela nasceu no Dia da Consciência Negra), ela dedica-se com naturalidade à política institucional por entender que alguém como ela precisa estar neste lugar, por representatividade, transformação e radicalidade. Erica diz que a esfera política não era um sonho ou uma carreira que traz prazer.

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(Juh Almeida/Fotografia)

“Eu digo que meu corpo está em sacrifício. Não é um sonho estar na política. Eu tenho um sonho de reforma agrária, de equidade, de equilíbrio de poder, de que as pessoas tenham oportunidades. Esses são meus sonhos, meu sonho não é estar na política. Eu estou ali cumprindo uma responsabilidade”, conta Erica, que consegue descansar da política em momentos triviais da vida, como quando está cozinhando, algo que adora fazer. Mas alguns pensamentos triviais para pessoas privilegiadas (majoritariamente, pessoas brancas), como pensar sobre a própria velhice, para ela, acabam também perpassados por pensamentos políticos. “Pensar em ficar velha é pensar no agora. Tem uma coisa muito interessante, estamos falando de ciclos da vida. As pessoas falam que ‘as crianças são o futuro do país’. Gente, não é o futuro, é o presente. Se a gente não pensar nessa criança no agora, não haverá esse ser no futuro. Pensar na velhice é pensar no agora, criando formas de proteção e garantias de sobrevivência, não só para mim enquanto indivíduo, mas como um ser coletivo.”


“Eu digo que meu corpo está em sacrifício. Não é um sonho estar na política. Eu tenho um sonho de reforma agrária, de equidade, de equilíbrio de poder, de que as pessoas tenham oportunidades. Esses são meus sonhos, meu sonho não é estar na política. Eu estou ali cumprindo uma responsabilidade”

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Você é uma mulher trans, negra, em um país marcado por estatísticas assustadoras de mortes relacionadas à homofobia, transfobia, racismo… Você pensa na sua velhice ou precisa ocupar tempo demais em estar viva amanhã?
Adorei a pergunta. Eu não sei se é um exercício o que eu faço, mas constantemente eu tenho o pé no chão. A todo momento que sinto e percebo a representação que tenho, como a representatividade dessa figura, com todos esses marcadores, mexe com as pessoas, com a sociedade, eu coloco o pé no chão. O que quero dizer é que estou muito atrelada aos meus fundamentos, tenho consciência de onde eu vim, o que me constitui. Estou falando de uma história negra longa, gigantesca, da diáspora, da escravidão, da luta pela emancipação. Estou falando também em relação ao gênero, consciente de tudo isso. Isso provoca em mim uma constante racionalidade, esse pé no chão. Eu penso a todo momento sobre mim não só na velhice, mas sobre mim como um corpo que é fragilizado por todas essas violências. Eu não sou frágil, mas meu corpo é vulnerável. Então, eu me protejo, me cuido, neste agora. Estou sempre observando o meu corpo físico e isso consequentemente diz respeito a pensar numa velhice, inclusive, em conseguir envelhecer.

E como é esse processo de pensar em conseguir envelhecer?
Pensando em outros aspectos, porque essa pergunta caminha em outras direções, no sentido de uma segurança econômica, de um lugar para viver, tem uma frase da Preta Ferreira que é ótima. Ela diz que todo mundo que vive de aluguel é um sem-teto. Isso é perfeito. Por enquanto, eu sou uma sem-teto, mas nem tanto, porque tenho a casa da minha mãe e, qualquer coisa que possa acontecer, eu tenho para onde voltar. Eu acho que isso é o que me dá alicerce para que eu permaneça, para que eu continue sem negociações em torno dessa luta, para que eu continue de forma íntegra, coerente e radical, em relação ao que a gente tem que lutar, que é esse capitalismo selvagem, doente e violento. E eu tenho outras garantias, porque tive a oportunidade de estudar, tenho uma estrada, estava iniciando um doutorado, que é algo que eu quero dar continuidade. Tenho uma história profissional como professora e uma produção artística que, embora esteja adormecida, tenho consciência de que ela tem potencial de circulação. Tenho muitas garantias para além de me garantir dentro da esfera pública e política, porque eu nem olho para isso como emprego. Eu vejo como uma responsabilidade histórica, que eu não determino como meu futuro eterno.


“Tenho muitas garantias para além de me garantir dentro da esfera pública e política, porque eu nem olho para isso como emprego. Eu vejo como uma responsabilidade histórica, que eu não determino como meu futuro eterno”

Isso é forte, porque mostra que, mesmo com toda essa trajetória e formação, envelhecer é um exercício de persistência.
Eu fico preocupada, mas viver é perigoso. É óbvio que existe um registro que me deixa mais suscetível a diferentes violências, mas eu posso atravessar a rua e ser atropelada também. Então, a gente está lidando com muitas variáveis nessa equação. Existem essas, que são determinantes da minha identidade, de tudo que compõe meu corpo, minha história. Mas eu posso ficar doente também, temos uma pandemia aí. Pensar em ficar velha é pensar no agora. Estamos falando de ciclos da vida. As pessoas falam que “as crianças são o futuro do país”. Gente, não é o futuro, é o presente. Se a gente não pensar nessa criança no agora, não haverá esse ser no futuro. Pensar na velhice é pensar no agora, criando formas de proteção e garantias de sobrevivência, não só para mim enquanto indivíduo, mas como um ser coletivo. Porque eu sei que esses marcadores identitários me ferem e me violentam enquanto coletivo, eu não sou a única mulher trans negra, nordestina etc e tal. É uma luta para reversão de violências que são distribuídas de forma generalizada, estrutural.

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Quando você criou o Aparelha Luzia, embora independente do poder público, já era um gesto político. Por que decidiu trocar a atuação orgânica pela institucional?
Eu sempre faço um exercício de resgate, de busca, para as pessoas entenderem que as coisas não fazem parte de um acaso. Os acontecimentos fazem parte de um cultivo. Eu sou filha em linha reta, no sentido coletivo, de lutas históricas de povos que precisaram resistir para sobreviver. Minha família veio do bairro mais negro de Recife, onde tem o primeiro terreiro de candomblé de Pernambuco, a sede do Caboclinho Sete Flexa, que é onde a cultura indígena tem uma expressão na dança e que atravessa a urbanidade, as escolas de samba. Minha mãe foi batizada por Francisco Julião, um dos líderes das Ligas Camponesas [organizações que lutavam pela distribuição de terras e por direitos para os camponeses, algo que está nas discussões pela reforma agrária brasileira]. Eu nasci nesse lugar. Meu avô e minha avó nunca foram considerados como um quadro na política institucional, mas estavam ativamente lutando por moradia e tinham uma posição política: minha família toda estava com as Ligas Camponesas. Quando o Miguel Arraes foi preso, minha avó ficou dias participando de manifestações. Eu fui percebendo que a política tinha um lugar dentro da construção do pensamento e da reflexão daquela família.

Ainda criança, quando ouvia essas histórias, você já participava da conversa?
Na primeira eleição direta para presidente da república depois da Ditadura, entre Collor e Lula, em 1989, o que esta criança fez? Peguei uma caixa de sapato e chamei um menino branco que tinha na minha rua, eram poucos – eu já estava na região metropolitana de Recife, em uma cidade chamada Paulista –, e falei que ele era o Collor. Aí eu chamei um outro, que no meu olhar era mais próximo de Lula. E aí realizei uma eleição. Eu ia com os dois até a porta da casa das pessoas, com as cédulas na mão, e as pessoas colocavam o voto nessa caixa de sapato. E o Lula ganhou. [Risos.]

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Com essa construção, a política pareceu sempre um destino possível, portanto.
Essa postura nunca cessou. Eu vi minha mãe, que é parte das mesmas estatísticas, que lidou com o abandono parental do marido e criou os filhos como mãe-solo, e era arrimo da família – como ela foi a escolhida para estudar, ela sustentou toda a família. Eu via minha mãe muito pouco, porque ela era enfermeira e dobrava plantões, trabalhava muito, era bem difícil. Mas eu tenho uma memória que eu gosto muito: eu ia para a esquina de casa e ficava olhando para os ônibus e, quando eu via a minha mãe descendo, eu saía correndo até ela. Aí minha mãe chegava em casa, tomava banho e saía de novo para atender o bairro, aplicar injeções, medir temperatura, ver quem estava doente, e eu ia com ela. Ela era enfermeira no hospital, funcionária pública, mas ela não recebia um centavo por isso que fazia depois do expediente. E eu vi nisso a importância do coletivo, dos outros, entendia a política como um espaço necessário. 

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(Juh Almeida/Fotografia)

Você lembra de um momento em que viu reflexos de acompanhar sua mãe nessas visitas aos vizinhos no bairro?
Na quinta série, eu saí da escola do bairro e fui para uma escola pública que era disputada, que tinha de fazer prova para entrar. Lá, tinha desde filhos de comerciantes até gente muito pobre na mesma sala. Lembro que eu tinha o meu material escolar, mas vi gente que não tinha livro, por exemplo, e não tinha uma política de transferência de livros. Aí não sei de onde veio essa ideia, mas eu fui na sexta série e recolhi os livros que eles tinham do ano anterior. Levei para casa e apaguei eu mesma todas as respostas. Aí eu chamei os alunos que não tinham, escondido, para ninguém ver, porque eu imaginei que aquilo seria uma coisa vexatória, e distribuí esses livros.


“Pensar na velhice é pensar no agora, criando formas de proteção e garantias de sobrevivência, não só para mim enquanto indivíduo, mas como um ser coletivo. Sei que esses marcadores identitários me ferem e me violentam enquanto coletivo, eu não sou a única mulher trans negra, nordestina”

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Em meio a todo esse contexto político, você entende que precisa passar por uma transição de gênero. Entendo que é uma pergunta delicada, mas como foi esse processo?
Essa é uma pergunta muito delicada para as pessoas trans, porque a gente sempre sabe, mas a decisão política de fazer isso se externalizar se dá de formas muito peculiares, diversas, e que causam muitos ônus no decorrer de uma história. Então, vou te contar uma história: quando eu era muito pequena, me tornei ateia, ainda criança. Eu não sou ateia hoje, mas me tornei aos 10 anos. Sabe por quê? Eu me apaixonei por um menino e qual foi a minha primeira solução para poder me relacionar com ele? Ser uma menina, a minha solução foi imediatamente essa. Todo mundo naquela fé de Jesus, Deus, de que a fé move montanhas, aí eu fui para o quintal de casa e pensei: “Se eu orar, se eu rezar com muita fé, Deus vai me fazer virar menina”. Aí lá estava eu, com muita fé, orando, orando, orando… Sabe quando uma criança chega naquele grau de emoção em que começa a chorar e quase vomita de tanta força que tem aquilo que está vivendo? Quando eu saio dessa catarse, eu olho e o pênis está lá. Aí eu falo: “Deus não existe”. 

É uma decisão forte com tão pouca idade.
Foi a razão que organizou minha cabeça. Outra coisa muito forte que eu lembro é que eu gostava muito de dormir, mas não porque eu tinha muito sono, mas porque poderia escolher meus sonhos, e eu sabia fazer isso. Então, ficava criando um enredo antes de dormir, aí tinha vez que eu sonhava exatamente com o enredo. E meu enredo era “e se eu fosse Michele?”, “e se eu fosse Janaína?”, “e se eu fosse Paula?”. E não era para eu me relacionar com ninguém, era para me movimentar no mundo. Então, eu tive muitos processos de transição, idas e voltas. Na adolescência, por exemplo, quando eu tinha em torno de 16 anos, fazia parte de um grupo de amigos com quem eu fazia intervenções de arte e moda. Era uma discussão forte de gênero e sexualidade, caminhando pelas ruas de Recife. Aí corta pra São Paulo, eu começo a viver aqui e sinto a política presente novamente, as amizades que eu construí são pessoas muito organizadas e atuantes. Passei uma vida inteira depois de adulta militando sem ser filiada, apenas porque era importante. E trabalhando, dando aulas, produzindo artisticamente. No meu trabalho como professora, nunca fugi disso. Nunca consegui pensar em processos formativos sem raça e gênero estarem dentro da discussão.

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(Juh Almeida/Fotografia)

Como foi o tempo que passou dando aula?
Nunca fui uma professora especialista. Eu trabalhei com crianças por muito tempo, era a chamada professora polivalente, do ensino fundamental. E quando eu comecei a dar aula para professores, e passei muitos anos fazendo isso, não precisava de uma disciplina específica. Eu trazia temas e colocava arte, cultura e política como o cerne da discussão, para pensar.

É o caminho que, anos depois, te levaria até a criação do Aparelha Luzia.
Quando surge o Aparelha Luzia, eu desisto das instituições em que eu trabalhava, porque eu achava que elas tinham um limite. Elas não avançavam na radicalidade. Eu já estava nas tampas. Aí, falei para mim mesma: ‘isso que você está pensando só está em um lugar: na sua cabeça’. E aí o Aparelha se materializou, como uma obra de arte, uma instalação, meu atelier também em algum momento, e um espaço para que atravessassem diversas outras experiências culturais e intelectuais. Falando da política novamente, sempre achei que pudesse ser possível estar nesse lugar que estou hoje, mas nunca me esforcei ou batalhei ou quis fazer que acontecesse. Mas se fosse preciso, eu estaria. 

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Você fala em outras entrevistas do caso da Marielle Franco como um gatilho para você fazer esse movimento. Aquela tragédia foi o momento em que você sentiu essa necessidade?
Sem dúvida. A gente estava em um momento de recrudescimento das forças conservadoras, mas, ao mesmo tempo, a gente tinha um capital político, uma força política que estava em ascensão, mas que precisava ser materializada dentro da institucionalidade. 

E é aí que você se candidata?
Eu não ia me dispor para esse lugar, eu queria escolher duas pessoas para concorrer por vagas para deputado federal e estadual, duas pessoas para eu apoiar. E eu conversei com essas pessoas, disse que pretendia me movimentar absurdamente para que isso acontecesse. Mas essas pessoas não chegaram em um consenso, porque as duas queriam concorrer na esfera federal. E aí eu não encontrei nenhum nome que fosse similar no que estava sendo traçado enquanto projeto político radical de uma narrativa negra. Precisava de um discurso que estivesse atrelado a Dandara, Akotirene, Ganga Zumba e todo mundo da resistência anticolonial, mas que também trouxesse para a modernidade e refizesse isso com os passos da contemporaneidade. Eu olhei para um lado, olhei para o outro, e pensei: “Eu vou ter que fazer isso”.

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Foi um movimento pela necessidade, não pelo desejo?
Sempre que me perguntam sobre esse processo, eu digo que meu corpo está em sacrifício. Não é um sonho estar na política. Eu tenho um sonho de reforma agrária, de equidade, de equilíbrio de poder, de que as pessoas tenham oportunidades. Esses são meus sonhos, meu sonho não é estar na política. Eu estou ali cumprindo uma responsabilidade. 

Quando você entendeu que seria você mesmo a candidata, quais metas você assumiu com você mesma, não no programa político?
O propósito acho que não se diferencia do propósito anterior à campanha, anterior à minha figura política, pública. O propósito é de alternância de poder, de reintegração de posse. Eu capturei esse termo, reintegração de posse, porque é um termo usado no direito para discutir propriedade. Estou falando de restabelecer o patrimônio material e imaterial da população indígena e negra no sentido de reparação. É um conceito que materializa-se, por exemplo, numa reforma agrária. E acho importante falar de poder não como algo destrutivo, mas o poder de existir, por exemplo. E a alternância de poder, nesse caso, é entregar o lugar de decisão às pessoas que foram destituídas desse lugar, que nunca puderam decidir. Isso é filosófico, sim, é militante, mas, objetivamente, significa uma coisa muito simples: existe um grupo de pessoas que foi apartado, excluído, mas que desenvolveu uma habilidade de sobrevivência – capacidade já tinha –, e acima de tudo uma sensibilidade gigantesca para desconstruir a violência que incidiu em nossos corpos. Tem uma questão filosófica, mas tem uma matemática da ordem da objetividade. Minhas metas pessoais não estão em nenhum momento dissociadas das coletivas. Eu sou um ser essencialmente coletivo. 

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(Juh Almeida/Fotografia)

Ao fim do primeiro ano de mandato, você disse que 2019 tinha sido um ano de aprendizado, de entender o funcionamento e as possibilidades para a luta do povo negro na política. Aí 2020 foi esse ano infelizmente histórico, sem paralelos. Como foi?
2020 ensinou algo muito importante, que a gente pode fazer várias coisas à distância, a praticidade disso. Mas, ao mesmo tempo, trouxe um dado que nós já sabíamos, da vulnerabilidade e do empobrecimento do nosso povo, e isso se tornou extenuante. Antes já era absurdo para além do absurdo. O trabalho foi correr atrás de reduzir os danos em relação ao grupo que, para mim, é prioritário, que é a população em situação de rua. Foi um ano de fazer as escolhas importantes para agir na institucionalidade. E aí tivemos conquistas como a gratuidade do Bom Prato, uma coisa feita a muitas mãos, tanto do gabinete quanto da defensoria pública. Conseguir que as mulheres trans também tivessem a oportunidade de receber auxílio emergencial. Tem uma série de ações que surgem a partir dessas escolhas. 2020 foi um ano de fazer escolhas para agir nas urgências.


“[2020] Foi um ano de fazer as escolhas importantes para agir na institucionalidade. Tivemos conquistas como a gratuidade do Bom Prato, Conseguir que as mulheres trans também tivessem a oportunidade de receber auxílio emergencial. 2020 foi um ano de fazer escolhas para agir nas urgências”

A Assembleia Legislativa de São Paulo, como toda a sociedade, reproduz a misoginia, o racismo e outras formas de opressão. Como é ter que se articular com os conservadores?
Se eu trabalhasse com a ideia de que tudo aquilo que não sou eu é meu inimigo, seria impossível viver. A Alesp não é diferente de outros lugares, dos jornais em que você trabalhou, por exemplo. Tenho certeza que a maioria é de pessoas brancas, cisgênero… Também não é diferente nas grandes empresas. As casas legislativas são resultado de absolutamente tudo. Então, eu lido com esse lugar exatamente do modo como eu lidava com todos os outros, entendendo que eu era a única no meio de um monte. Passado esse ponto, tem a transfobia institucionalizada, o racismo institucionalizado… isso tudo está presente, eu não preciso nem reiterar. Só coloca um ponto e acabou. Mas existem outras coisas acontecendo, tem funcionários lá de carreira que esperavam uma presença como a minha, que não são apenas gentis nas relações, mas também estão dispostos a apoiar para que o gabinete tenha seu funcionamento, porque eu poderia ser boicotada. As coisas que a gente conquistou nesse período de dois anos foi pela via executiva, de um governo que a gente sabe que é de direita, que tem inúmeros problemas e práticas de exclusão e opressão, mas que algumas coisas são possíveis de dialogar. Só não há possibilidade de diálogo com gente sem fundamento, sem lastro intelectual, e não estou falando de um saber acadêmico, estou falando de lastro intelectual como conhecimento de mundo, sensibilidade. Com esses, não há diálogo.

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(Juh Almeida/Fotografia)

Como foi a movimentação depois do atentado contra a casa da covereadora Carol Iara. Você tem medo?
Quando fui eleita, recebi ameaças bem diretas. Eu recebi um email descrevendo toda a minha casa, o prédio, a portaria, a porta do meu apartamento, que tinha uma frase escrita, descrevendo tudo. A pessoa sabia como entrar, inclusive. Era um prédio que não tinha garagem, bem antigo e, em algum momento, eu precisaria entrar e sair. Se a pessoa esperasse, eu iria passar. Eu não quis fazer denúncia pública e não fiz, achei que chamaria atenção para o fato de que eu ia mudar de casa e isso ia gerar outro problema. O fato disso ter sido uma preocupação constante criou uma série de protocolos, preocupações, formas de se deslocar etc. 

Mas é triste estar o tempo inteiro em estado de alerta.
É sobre isso, não tem o que fazer. É exatamente isso. Mesmo se eu não fosse uma pessoa política, pública, eu seria quem eu sou e estaria desprotegida. Eu não posso achar que não sou vulnerável. Quando aconteceu isso com as meninas, o atentado, eu falei com elas, me solidarizei, as assessorias estão se movimentando para criar protocolos de segurança. Mas a primeira providência que eu tomei foi falar com o Coronel Camilo, da Secretaria de Segurança Pública, para falar do caso, pedir celeridade e que a Secretaria investigue. Em um segundo momento, fui falar com o Secretário de Justiça, para buscar medidas protetivas. Estamos tomando medidas institucionais para a proteção desses corpos, para que eles possam fazer seu trabalho.


“Se eu trabalhasse com a ideia de que tudo aquilo que não sou eu é meu inimigo, seria impossível viver. A Alesp não é diferente de outros lugares. Também não é diferente nas grandes empresas. As casas legislativas são resultado de absolutamente tudo. Então, eu lido com esse lugar exatamente do modo como eu lidava com todos os outros, entendendo que eu era a única no meio de um monte”

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(Juh Almeida/Fotografia)

Você consegue em algum momento do seu dia não ser um ser político?
Eu consigo, deixa eu ver… quando eu estou cozinhando, talvez. Eu cozinho muito, as pessoas se assustam com isso. Fui criada com raízes, aprendi a comer bem, comida boa. Meu avô fez uma composteira com uma caixa d’água que não prestava mais, tinha uma consciência ambiental também. É muito engraçado esses termos que se tornam produtos para a sociedade, economia sustentável, sustentabilidade, consciência ambiental. A gente vivia isso. Na minha casa, tinha cana de açúcar, goiaba, manga, coco, jambo, acerola, algumas flores, como hibisco. Que delícia que era. Tinha galinha. Eu tive uma infância muito bonita apesar de tudo.

Como era sua constituição familiar?
Eu tenho um irmão e mãe, pai é aquela coisa. Minha mãe é mãe-solo. 

Mas você teve algum contato com o seu pai?
Eu tive alguns contatos com ele, mas nada muito profundo.

Nada que insira ele no que você considera família.
Para mim, não. Era muito específica a relação dele comigo, diferente do meu irmão. 

Tem a ver com você ser uma mulher trans?
Sem dúvida nenhuma, e isso eu estou falando de criança. 

Desculpe entrar num assunto delicado, mas imagino que muitas pessoas cometam essa indelicadeza de perguntar sobre o tempo em que você ainda mantinha uma estética masculina. Mas você fala de si mesma no passado sempre como Erica. Quando você olha para as memórias construídas naquela época, você se vê já como Erica?
É uma reintegração de posse da minha identidade que foi saqueada. Quando criança, eu vejo muito assim. Mas quando eu olho para as outras imagens, eu vejo um ser aprisionado, com problemas e questões que não eram distribuídas para as pessoas, eu era organizada para não fazer isso. Mas eu sei o quanto de angústia morava ali dentro. E era muita.

E não tinha as referências que existem hoje em maior número. Na cultura, tem Liniker, Assussena, Raquel Virgínia, Majur; na política, você, Erika Hilton, Carol Iara. Você lembra de alguma referência que te ajudou ou inspirou neste processo?
Nos maracatus, em Pernambuco, tem muita travesti. Era o lugar onde eu me via, era o lugar onde eu via mulheres trans e travestis, performando uma festividade, uma beleza, poder etc. Esse era o lugar possível que eu encontrava, mas grande parte das travestis que a gente vê estão na prostituição. Mas essas do maracatu me acalentavam. Eu não entendia como acontecia, porque você vai numa biblioteca e não tem esse livro, e não tinha internet. Não tinha como acessar a pessoa ou a informação. E quando eu falo para a minha mãe que eu achava que era gay, a única coisa que ela me falava a toda hora e a todo momento era sobre uma travesti que trabalhava com ela e morreu quando foi colocar silicone, só sobre coisas assim. Porque a minha mãe sabia a diferença entre uma pessoa gay e uma pessoa trans, ela tem esclarecimento para isso. Ela simplesmente sabia que o que ela via na infância estava presente.

Quando a gente olha para questões de raça e gênero, você sente também na esquerda situações estruturais que reproduzem essas violências?
A branquitude da esquerda reluta ainda em compreender, aceitar e respeitar o fundamento racial. Ainda está presa a uma construção intelectual europeia, que dita a luta de classes como elemento fundante das civilizações modernas e contemporâneas. E isso não pode ser dito quando se trata de países como o Brasil, por exemplo, em que classe é uma consequência de raça. A branquitude da direita é o que se espera dela em termos de limitação, e a da esquerda ainda está presa a pressupostos acadêmicos que precisam ser atravessados por outras ideias, pensamentos.

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(Juh Almeida/Fotografia)

Aí a importância das discussões identitárias.
Se a gente está falando da questão identitária, de identidade, a gente não está falando do indivíduo, está falando do registro todo que o compõe, tudo que diz respeito à história, ao sistema. Falar sobre identidade é simplesmente demarcar e desvelar como se deu esse projeto de construção de desigualdades e a quem ele foi dirigido. Para desatar esse nó, é fundamental olhar para isso. Se nós não revertermos isso e alternar o poder, colocando pretos e indígenas em espaço de decisão, se a gente não ampliar as oportunidades, não dá para ficar falando que o problema do Brasil é a saúde, a educação, a moradia. Sim, é. Mas quem é atendido por isso? Gente preta empobrecida. Ou olha para isso, ou você está brincando que quer romper desigualdades.


“A branquitude da esquerda reluta ainda em compreender, aceitar e respeitar o fundamento racial. Ainda está presa a uma construção intelectual europeia, que dita a luta de classes como elemento fundante das civilizações modernas e contemporâneas. E isso não pode ser dito quando se trata de países como o Brasil, em que classe é uma consequência de raça”

Episódios como essa discussão em torno do BBB, por exemplo, mostram isso também, essa estrutura racista?
É racista a criação do programa. É racista lidar com isso como espetáculo. É racista fragilizar uma narrativa séria. É tão previsível e tão bem pensada a tentativa de implosão da narrativa negra, da coerência negra em relação às narrativas de afirmação, que tanto a criação do programa quanto a continuidade visam exatamente explorar essas contradições e fragilidades. Isso tudo é anterior ao programa. O grande público tem uma mistura de coisas. A gente tem um Brasil violento, que gosta de ver ringue. Essa é uma geração Datena. O grande público desse programa é assim. Eu não quero passar pano, porque aquilo que eu vi me deixou extremamente horrorizada. Mas eu sei e você sabe que se fosse uma mulher branca seria uma outra forma de ataque.

No mestrado, você estudou história da arte e estética. Ter a estética no seu campo de estudo ajuda a ler o cenário atual, pensando nas discussões sobre a necropolítica como uma manifestação ética, estética e política?
Eu tenho medo de um dia virar aquela pessoa que estuda muito e acha que o que ela estuda é a solução de tudo. Mas eu vou fazer um parêntese. Estética é a matéria base das artes e é uma palavra muito próxima da ética, e não são próximas apenas por uma questão de radical. A moral, que fundamenta as leis e todos os mecanismos de regulação social, surge da ética, que está completamente atrelada à estética. E a estética, numa definição muito simples, é o conhecimento sensível, o motivo de as pessoas se apegarem e se agregarem a determinadas visões, a determinados discursos. É óbvio que naturalmente vão existir sempre muitos antagonismos possíveis, eles só não podem significar a morte do outro. Quando fizermos esse pacto civilizatório, poderemos discutir quaisquer outros temas, diferentes campos de visão, o futuro do país… Quando as pessoas não passarem fome e tiverem uma casa.

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(Juh Almeida/Fotografia)
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As imagens que você viu nessa reportagem foram feitas por Juh Almeida. Confira mais de seu trabalho aqui.

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