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Um caminho alternativo para as Índias

Yoga, meditação, festival das cores e um show de estereótipos: por que a Índia que conhecemos no Brasil é tão caricata?

por Juily Manghirmalani Atualizado em 26 abr 2021, 13h15 - Publicado em 23 abr 2021 01h27

Desmistificando Índia

U

ma das grandes potências mundiais, a Índia é uma nação que compõe quase 20% de toda a massa populacional do mundo. É uma região rica em pluralidade de idiomas, culturas internas, gastronomias, mitologias e conhecimentos dos mais diversos. Venho aqui abrir um atalho do Brasil até o subcontinente indiano para instigar uma revolução do olhar, para que possamos ver que há muito mais camadas sobre o que consumimos do que facilmente chega à mesa e buscar entender que é preciso ter uma visão crítica sobre o que nos é apresentado em relação às culturas que não as nossas. 

Pretendo começar por mim mesma, não só por ter ascendente em leão, mas também porque sou uma das poucas indo-brasileiras nascidas e estruturadas por aqui, um retrato dentre cerca de 6 mil pessoas dessa origem espalhadas pelo Brasil.

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Ser “diferente” é um negócio bem difícil. É coisificado, objetificado, com uma sensação estranha de tolerância e – quando não admirado ou exoticizado – vem com uma sensação de preguiça: melhor não aprofundar e fingir que somos iguais. Foi assim que cresci. Percebia o incômodo ao falar meu nome. Quando me apresentar não parava só ali, mas tinha que vir também com toda uma explicação. A sociedade na qual fui inserida não é tão receptiva com a pluralidade e com as diferenças. Isso fez com que, por muito tempo, tentasse apaziguar essa minha sensação de ser desconfortável com uma cooptação forçada. Simplificava meu nome a um apelido, queria ter menos pêlos, falar com os Rs acentuados, andar igual, respirar igual e rir das mesmas piadas. Vocês já imaginam onde isso deu, né? Não consegui. (Graças às Deusas)

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(Juily Manghirmalani/Arquivo)


“Ser “diferente” é um negócio bem difícil. É coisificado, objetificado, com uma sensação estranha de tolerância e – quando não admirado ou exoticizado – vem com uma sensação de preguiça: melhor não aprofundar e fingir que somos iguais. Foi assim que cresci”

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Juily Jyotsna Seixas Manghirmalani é o meu nome completo. Um trava-línguas do qual sempre brinco que, para ter esse nome e ser alfabetizada aos seis anos, era necessário um QI realmente alto. Nasci em Manaus e vim morar em São Paulo em 1997, aos sete anos de idade. Mesmo antes de conseguir me defender como ser humano, já sabia que a vida seria um pouco mais difícil para mim do que para minhas amigas paulistanas – até então, todas brancas e de classe média, com nomes e famílias “normais”, ou melhor, normalizadas como “comuns”. Eu não só era de outra ascendência, com conhecimentos diferentes dos delas, mas também com pais de origens distintas. Casados em 1989, minha mãe é amazonense e meu pai, imigrante de primeira geração da Índia. Além disso, também sou a irmã mais velha de duas outras pessoas: a mais revoltada, batalhadora, a irmã-protetora que por muito tempo acreditei naturalmente ser. 

Até que, com o passar dos anos, entendi que muitos dos meus comportamentos eram, na verdade, imposições e expectativas culturais dos meus pais. Aprendi muito cedo – com vários erros e uma grande munição para vários bullyings – a negociar entre as culturas manauaras e indianas de dentro de casa, com as culturas externas, da escola e dos amigos, todos de origem portuguesa ou italiana. Engraçado, né, porque além de ter que ingressar em uma São Paulo aos sete anos, onde mais parecia que eu tinha mudado de planeta, não tem algo mais diferente do que Manaus e Mumbai, onde meus pais nasceram e cresceram. Em uma cidade, a brasileira, eu posso andar de shorts curtos e dançar até o chão na maior naturalidade; na outra, preciso me vestir toda coberta e ser a mais obediente e dócil possível. Em uma, a virgindade perde-se cedo; na outra, somente após o casamento bem selecionado. Cara, ter crescido eu mesma foi tarefa árdua e só hoje consigo compreender quantas nuances tive que aprender a negociar antes de ter papel ativo em cima.

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(Barah/Ilustração)
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Movimentos migratórios

Para falar mais especificamente da Índia, preciso que vocês saibam porque há tão pouco intercâmbio entre eles e o Brasil. Apesar de fazermos parte de um recente levante de países subdesenvolvidos que até há pouco tempo ocupavam cadeiras em economias emergentes, os chamados BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e South Africa/África do Sul), as trocas culturais são muito pequenas entre as duas nações. 

Um dos maiores motivos para isso é a decorrência da baixa imigração entre os povos. Durante os processos coloniais, houve duas ondas migratórias indianas, mas, no período moderno datado a partir da metade da década de 1960 até hoje, os indianos se tornaram um dos povos que mais expressivamente migraram por motivos econômicos, sendo Inglaterra, Estados Unidos, Canadá e Austrália os principais países de destino. Alguns grupos também se espalharam pela Ásia, como em Cingapura e Dubai, outros desceram para África, mas poucos vieram para a América do Sul. O discurso que mais ouço sobre esse feito é por conta de questões linguísticas: a prioridade era ir para um país que falasse inglês, a língua dos colonizadores na Índia, portanto uma das línguas oficiais do país. 

Há registros de pequenas imigrações de indianos para o Brasil no século 17 em prol do auxílio no cultivo da canela, um grande item de importação da época. Depois, Goa, que é um dos estados indianos, também foi colonizado por Portugal e a facilidade do idioma trouxe uma pequena população ao Brasil para o cultivo de palmeiras. E, durante o ciclo da borracha, há dados de indianos na busca de ouro na Floresta Amazônica. No entanto, a imigração mais expressiva ocorreu na década de 1960, com a vinda de Sindhis, uma das etnias indianas, que chegaram em Manaus pelo caminho da América Central. Esses trabalhavam como comerciantes. A segunda onda migracional teve seu início no decorrer da mesma década, só que agora no Rio de Janeiro e em São Paulo, através de professores universitários que vieram suprir uma demanda interna das universidades brasileiras. 

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Fato é que o número de pessoas de origem indiana em nosso território vem crescendo com a chegada de cientistas e profissionais de tecnologia. Gradualmente, há uma notável movimentação contemporânea de indianos que passam pelo Brasil por tempo determinado vindos por companhias para as quais prestam serviço. Porém, fixar-se no Brasil requer muito mais. São poucas as famílias que atualmente residem no país sem almejar retorno para a Índia ou outro país do Norte Global. Isso ocorre pelo Brasil não ser considerado apropriado para cultivo de suas famílias e por ter uma comunidade muito pequena e pouco plural, tornando qualquer pessoa que possua origens e convicções indianas muito solitária aqui. Apesar de não haver objeções em retiradas de vistos entre ambos os países, há uma constante dificuldade de indianos virem para cá a trabalho que não seja para atuar nos campos das ciências tecnológicas.

“O número de pessoas de origem indiana em nosso território vem crescendo com a chegada de cientistas e profissionais de tecnologia. Gradualmente, há uma movimentação contemporânea de indianos que passam pelo Brasil por tempo determinado vindos por companhias para as quais prestam serviço. Porém, fixar-se no Brasil requer muito mais”

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(Barah/Ilustração)

Descobrir-se indiana

Enquanto aluna de classe média de colégio privado, aprendi pouco sobre a Índia. Aprendi que o Brasil foi “descoberto” porque os portugueses estavam a caminho das Índias e caíram nesse território – e que muito inoportunamente resolveram aproveitar e colonizar aqui também. Ah, os europeus. Aprendi também sobre a cultura indiana ser fascinante, esotérica, deuses com cabeças de elefante e peles azuis, o poder da yoga e da medicina natural, como também sobre a incrível pobreza, feminicídio, castas e outras desumanizações enormes. Tudo que me fazia temer, ter medo e não querer ser. Era complexo aprender aquilo e ser alvo de brincadeiras na escola, tanto de crianças que não entendiam o que faziam, quanto da Juily de 10 anos que não tinha acompanhamento psicológico para crescer sendo tão miscigenada.

Aos 15 anos, tive a oportunidade de viajar com meu pai (que ia a trabalho e eu de bagagem de mão) e conhecer minha família, os tios e primos viventes nos Estados Unidos e Nova Zelândia. Atravessar oceanos foi também interno. Abriu minha cabeça para uma outra visão da Índia que eu ainda não possuía. A Índia família, a Índia alegre, a Índia colorida, com diversos aromas e com morais mais flexíveis, com crenças nos direitos das mulheres de decidir. Na Índia que meus tios construíram ao também se tornarem imigrantes e expatriados. Uma Índia em negociação. Voltei de lá com uma nova noção de pertencimento. Uma vontade de existir em resistência. Com a cara queimando de vergonha, mas agora com coragem de apenas ser. Apresentei tudo que aprendi lá para meus amigos, construí uma nova identidade na minha casa compartilhada com os meus irmãos. Agora, a gente não tinha berço, mas tínhamos raízes e podíamos crescer com asas.

“Atravessar oceanos foi também interno. Abriu minha cabeça para uma outra visão da Índia que eu ainda não possuía. A Índia família, a Índia alegre, a Índia colorida, com diversos aromas e com morais mais flexíveis, com crenças nos direitos das mulheres de decidir”

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Hoje, aos 31 anos, faço parte de uma série de associações que buscam uma aproximação entre esses países. Temos em São Paulo o ICCR (Centro Cultural administrado pelo governo indiano), a IASP (Indian Association in São Paulo), a BrIndARC (Brasil – Índia Associação de Redes de Conhecimento, grupo de pesquisa acadêmica), o Bloco Bollywood (bloco de carnaval que sai anualmente em São Paulo feito por indianos viventes aqui), o Feels Like India (canal de cultura e dança), o Namastê Índia (grupo de dança), entre muitas outras iniciativas e pessoas responsáveis que estão, em conjunto, trabalhando por uma comunidade que busca pertencimento e integridade. 

Bloco Bollywood, em São Paulo: misturando algumas tradições indianas com movimentos contemporâneos
Bloco Bollywood, em São Paulo: misturando algumas tradições indianas com movimentos contemporâneos (Arquivo/Divulgação)
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Da antiguidade à contemporaneidade

Para pensar a Índia, é importante entender sua contradição nata, como um país recém pós-colonial. Acredite se quiser, mas fazem apenas 74 anos que a Índia é independente. Isso é uma geração viva ainda de seres humanos. E como diz a jornalista Florência Costa em seu livro Os Indianos: “A Índia é tudo aquilo que um turista vê. Mas também o seu oposto. Os contrastes estão a cada esquina. O país é espiritual e material; pacífico e violento; rico e pobre; antigo e moderno. Cultiva a democracia, mas mantém as castas. Criou o Kama Sutra, mas veta beijos nos filmes de Bollywood. Há indianos encantadores de cobra – ainda que a atividade seja proibida – e engenheiros de software. É perigoso generalizar sobre um país com mais de um bilhão de pessoas, divididas em milhares de castas, com sete religiões e mais de 20 línguas oficiais.” Florência é a responsável pelo maior site formador de ponte entre as culturas indianas e o Brasil feito até o momento, o chamado Beco da Índia.

Retratos de memórias na Índia, de 2011 e 2012, quando Juily foi ao país pela primeira vez
Retratos de memórias na Índia, de 2011 e 2012, quando Juily foi ao país pela primeira vez (Arquivo/Divulgação)

A Índia é uma palavra pequena demais para todo o alfabeto que ela significa. Minha recomendação é uma só: venham abertos e evitem julgamentos prévios. Ao longo desse especial sobre a Índia, que publicaremos ao longo das próximas semanas, trataremos de temáticas que selecionamos como essenciais para um conhecimento maior sobre essa nação que tanto encanta o Brasil. Afivelem os cintos para essa viagem que trará a discussão sobre a yoga embranquecida, as políticas do cinema comercial, discussões sobre as sexualidades, os importantes movimentos feministas, a diáspora e seus influencers contemporâneos. Existe muito mais Índia do que você imagina.

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As ilustrações que você viu nessa reportagem foram feitas por Barah. Confira mais de seu trabalho aqui.

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