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Era trabalhador, pegava o trem lotado, tinha boa vizinhança, era considerado. E todo mundo dizia que era um cara maneiro, outros o criticavam porque ele era funkeiro. O funk não é modismo, é uma necessidade. É pra calar os gemidos que existem nessa cidade” — este é um trecho da música Rap do Silva, do MC Bob Rum. Após 26 anos de seu lançamento, a letra, que conta a história de um trabalhador marginalizado por seu estilo, ainda é atual.
No Brasil, o funk carioca nasceu em meados de 1970, nos chamados bailes black, onde o ritmo se juntava ao soul. Na época, as festas contavam com DJs, paredões de som e reuniam milhares de pessoas. De lá para cá, a sonoridade se transformou ao incorporar batidas repetitivas – o chamado tamborzão – e hoje representa um dos mais importantes fenômenos de massa do país. Para se ter uma ideia, o maior canal brasileiro no YouTube é o do diretor e produtor musical Kondzilla, com mais de 64 milhões de inscritos. Ainda assim, o movimento é alvo de estigmatização, reflexo dos preconceitos contra a origem racial e social de seus seguidores.
Um exemplo disso é a declaração do produtor Rick Bonadio em sua conta do Twitter sobre a apresentação da cantora Cardi B no Grammy deste ano. Acontece que a artista inseriu um trecho do remix de “WAP”, feito pelo DJ Pedro Sampaio, e Bonadio não se agradou com a animação dos brasileiros. “Já exportamos Bossa Nova, já exportamos Samba Rock, Jobim, Ben Jor. Até Roberto Carlos. Mas o barulho que fazem por causa de 15 segundos de funk na apresentação da Cardi B me deixa com vergonha. Precisamos exportar música boa e não esse ‘fica de quatro'”, disse.
Mas engana-se quem pensa que esse é um alvo novo. Na verdade, tudo começou em 1992, quando a imprensa associou alguns arrastões ocorridos nas praias da Zona Sul do Rio de Janeiro aos funkeiros. “Uma reportagem do Jornal do Brasil traçou o perfil do funkeiro como morador de favela, amante de filme de violência, usuário de drogas e eleitor da candidata Benedita da Silva (PT). Aí ele ficou conhecido como um inimigo público. É como a elite via e ainda vê o jovem preto que anda na cidade”, explica o antropólogo Dennis Novaes, também criador do festival Favela Sounds.
“Uma reportagem do Jornal do Brasil traçou o perfil do funkeiro como morador de favela, amante de filme de violência, usuário de drogas e eleitor do PT. Aí ele ficou conhecido como um inimigo público. É como a elite via e ainda vê o jovem preto que anda na cidade”
Dennis Novaes
A criminalização por parte do Estado tomou forma quando, em 1999, a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro instaurou uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) a fim de investigar as festas nas periferias. O resultado foi a promulgação da Lei nº 3.410, que impôs uma série de regras aos encontros: passou a ser necessária uma autorização prévia, bem como a presença de Policiais Militares do início ao encerramento do evento e a proibição de músicas com apologia ao crime. Já em 2008, a Lei Estadual 5.265, criada pelo então deputado estadual Álvaro Lins, dificultou a organização dos bailes ao solicitar a apresentação de uma série de documentos para sua realização, como contrato de empresas autorizadas pela Polícia Federal – abrindo espaço para arbitrariedades nas decisões.
Só em 2009 que o funk foi institucionalmente considerado como cultura, com a Lei nº 5543. Segundo ela, este é “um movimento cultural e musical de caráter popular”. Além disso, a decisão indicou ao poder público o dever de assegurar suas manifestações próprias, como festas, bailes, reuniões, sem quaisquer regras discriminatórias e nem diferentes das que regem outras manifestações da mesma natureza. Já os assuntos relativos ao funk foram destinados a órgãos do Estado relacionados à cultura, e não à Segurança Pública, como vinha sendo realizado até então. E, por fim, ficou proibido qualquer tipo de discriminação ou preconceito, seja de natureza social, racial, cultural ou administrativa contra o funk ou seus integrantes.