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Gastronomia africana em ascensão

A cultura culinária da África começa a ganhar mais presença na alta gastronomia mundial e, com ela, traz um novo e inédito reconhecimento aos chefs negros

por Rafael Tonon Atualizado em 20 jun 2020, 15h38 - Publicado em 1 jun 2020 08h00
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(Clube Lambada/Ilustração)

screver um livro de memórias aos 29 anos pode parecer algo pretensioso. Mas para um cozinheiro negro nascido nos EUA que viveu a infância no violento Bronx nova-iorquino, passou um período da adolescência na Nigéria, vendeu drogas na faculdade e se tornou um dos mais promissores jovens chefs em um país em que o racismo ainda é notório, Kwame Onwuachi parece ter muito o que dizer.

Com a mãe, que tinha uma empresa de catering, ele aprendeu a cozinhar, mas foi nas cozinhas de restaurantes de alta gastronomia que forjou seu estilo de técnica apurada que o levou a abrir seu restaurante Kith/Kin, em Washington, e a receber alguns dos mais importantes prêmios da área – o reconhecimento do Guia Michelin, um dos mais importantes na gastronomia, e um James Beard como chef revelação. Em seu recém-lançado livro, Notes From a Young Black Chef (Notas de um Jovem Chef Negro, sem edição no Brasil), Onwuachi narra as minúcias de seu tempo como aprendiz em uma das mais concorridas cozinhas do mundo, a do Per Se, do renomado chef Thomas Keller, em Nova York. Do sonho de pisar em um restaurante tão premiado às desilusões que o agressivo ambiente da alta gastronomia trouxeram – “a retórica de um restaurante é muito diferente do que realmente acontece na cozinha”, escreve –, ele lembra como era ser um negro de origem humilde em um ambiente dominado por brancos.

Kwame Onwuachi passou pela cozinha de alguns dos restaurantes mais importantes de NY antes de se destacasse como chef de renome
Kwame Onwuachi passou pela cozinha de alguns dos restaurantes mais importantes de NY antes de se destacasse como chef de renome (Kwame Onwuachi/Divulgação)

“Houve muitos momentos, quando eu senti que estava sendo chamado pela ‘palavra com n’ [em inglês, nigger; uma conotação pejorativa de negro], sem que ninguém realmente a dissesse. Ninguém precisava, ou talvez eles fossem espertos demais para usá-la”, conta. Hoje, à frente da sua própria cozinha, diz que sente as coisas mudarem, ainda que muito gradativamente. Inclusive no menu e na aceitação das pessoas às comidas de origem africana.

Celebrando suas heranças que vão da Nigéria à Jamaica, unindo África Ocidental e Caribe, Nova Orleans e Nova York, ele diz perceber um maior interesse e aprovação dos pratos que serve, como a sopa egusi (receita nigeriana feita de sementes), com fufu, salsa e sementes de melão torradas, o arroz jollof ou o bolo cremoso de banana-da-terra, nozes-pecã e caramelo salgado. “É parte da minha herança, então eu tento servir de uma maneira que a maioria das pessoas possa entender a minha história”, diz.

“Houve muitos momentos, quando eu senti que estava sendo chamado pela ‘palavra com n’, sem que ninguém realmente a dissesse. Ninguém precisava, ou talvez eles fossem espertos demais para usá-la.”

Kwame Onwuachi, chef

Nunca a cultura alimentar africana ganhou tanto destaque no mundo da gastronomia como hoje. “Trata-se de uma culinária que é muito diversa”, ele diz, lembrando que as pessoas costumam colocar todo um continente sob um mesmo rótulo. “Realmente não conheço muitas pessoas que foram para a África e conheceram os cheiros, as pessoas, a cultura. Elas precisam de algo novo e agora estão se voltando para uma comida que é, ao mesmo tempo, emocionante e desconhecida”, ele acredita. Mas por que você acha que demorou tanto tempo?, pergunto. “Ah, isso é fácil: racismo!”, Onwuachi responde na lata, sem se preocupar em fazer rodeios.

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Em suas pesquisas, o chef Shay Ola percebeu semelhanças em preparos e ingredientes de diversos países ao redor do mundo, todos com inspirações africanas
Em suas pesquisas, o chef Shay Ola percebeu semelhanças em preparos e ingredientes de diversos países ao redor do mundo, todos com inspirações africanas (Queimado/Divulgação)

Racismo à mesa

O fato é que, quando parece cada vez mais urgente discutir as raízes africanas e suas contribuições para o mundo, a comida parece ter um papel importante neste debate: o de trazer o tema, literalmente, para a mesa. “Você não pode falar sobre comida americana sem falar sobre a África Ocidental”, Onwuachi diz. A própria cultura alimentar dos Estados Unidos, assim como de muitos outros países, foi fortemente influenciada pelos negros vindos da África, que acabaram por criar elementos bastante similares nos pratos de distintas nacionalidades. “Antes da Conferência de Berlim [que delimitou regras e acordos durante a ocupação do continente africano pelos países europeus] não havia linhas coloniais na África Ocidental. Havia tribos especializadas em certos alimentos e preparos. Tribos diferentes faziam trocas seguindo suas necessidades”, diz o chef. “Eles também compartilharam muitas das mesmas influências em sua comida; os países africanos têm muita culinária regional, mas também muitas semelhanças, o que nos traz a uma discussão sobre o que é a identidade da comida de cada lugar”, defende.

Kwame Onwuachi cita a relativamente recente independência das nações africanas como uma forma de não entender particularidades nacionais de cada uma delas na gastronomia
Kwame Onwuachi cita a relativamente recente independência das nações africanas como uma forma de não entender particularidades nacionais de cada uma delas na gastronomia (Kith/Kin/Divulgação)

Ainda que muitas nacionalidades reconheçam a importância da imigração de povos distintos em seus territórios para sua riqueza culinária, poucas são aquelas, segundo Onwuachi, que se orgulham com o mesmo afinco de suas influências africanas como fazem com as raízes francesas, italianas, japonesas. “Estou esperando o dia em que a cozinha africana será tão comum para a maioria dos americanos quanto o sushi”, desafia.

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Ele acredita positivamente que a culinária africana está apenas começando nos EUA e no mundo. E ganhando uma repercussão crescente e inédita. No ano passado, o Ikoyi, em Londres, foi o primeiro restaurante que serve apenas pratos de inspiração africana ou caribenha a ganhar uma estrela no Guia Michelin. O restaurante, com foco em receitas da África Subsaariana, é dirigido por dois amigos: Iré Hassan-Odukale, inglês negro, e Jeremy Chan, inglês nascido de pai chinês e mãe canadense.

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Com descendência nigeriana, Shay Ola é um dos principais nomes da cozinha contemporânea na Europa
Com descendência nigeriana, Shay Ola é um dos principais nomes da cozinha contemporânea na Europa (Shay Ola/Divulgação)

Maior representatividade

O amplo foco na discussão sobre a igualdade racial e a conversa política em torno das comunidades de origem africana que têm tomado o debate no mundo todo também ajudaram a aumentar a visibilidade e as oportunidades aos chefs negros – embora eles continuem sub-representados em restaurantes de alta gastronomia. “Tenho certeza de que pode haver alguns restaurantes que usam influências africanas em destaque em seus menus, mas poderíamos dizer que a gastronomia mundial está destacando a herança africana? Eu não tenho tanta certeza”, afirma o chef Shay Ola.

Quais são os ingredientes e pratos que você tem certeza que tem alguma origem africana?
Quais são os ingredientes e pratos que você tem certeza que tem alguma origem africana? (Queimado - Instagram/Reprodução)

Nascido em Londres de pais descendentes de nigerianos – ele próprio morou no país por cinco anos quando criança –, hoje ele vive em Lisboa, onde comanda o Queimado, um pequeno restaurante (de não mais de 20 lugares) no movimentado Bairro Alto. Depois de chefiar restaurantes em Londres, Paris e Berlim, ele decidiu se estabelecer na capital portuguesa para cozinhar apenas com fogo. De patas de caranguejo com manteiga de missô a cabrito assado na brasa, os pratos são compartilháveis ​​e as opções são limitadas, ainda que mudem com frequência.

“Poderíamos dizer que a gastronomia mundial está destacando a herança africana? Eu não tenho tanta certeza”

Shay Ola, chef
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“Cresci em uma casa onde o fish’n’chips era tão comum quanto a mandioca cozida e amassada. Eu diria que, como resultado de minha dupla herança, desenvolvi um interesse antropológico por comida. Quanto mais eu viajei pelo mundo, mais descobri semelhanças no uso de ingredientes e pratos, principalmente os de origem africana. Um ótimo exemplo foi no Brasil, onde descobri muitas receitas que temos na Nigéria”, ele conta.

Embora muito presente em distintos países, ele acredita que o impacto da escravidão e do colonialismo é um assunto pouco discutido quando se trata de justificar as razões da culinária africana ter sido negligenciada por tanto tempo. Isso tem ressonância, segundo Ola, nos números de restaurantes de comida africana no mundo, que ainda são relativamente baixos. “Mas noto uma tendência na própria África, onde chefs da diáspora, que aprenderam seu ofício no exterior, estão retornando a seus países e reinventando a culinária africana e se tornando extremamente bem-sucedidos nisso”, ele avalia.

Shay Ola afirma que já há um movimento de retorno à África por parte dos chefs que são entusiasta da gastronomia do continente
Shay Ola afirma que já há um movimento de retorno à África por parte dos chefs que são entusiasta da gastronomia do continente (Queimado/Divulgação)

“Eu posso imaginar um cenário muito parecido com a indústria cinematográfica de Nollywood [da Nigéria, a terceira maior depois de Hollywood e Bollywood], em que uma nova cena local de culinária neo-africana ganhará destaque no continente e, então, possa ganhar mais força talvez internacionalmente”, acredita.

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Reconhecimento à brasileira

No Brasil, a culinária africana também tem saído dos guetos e encontrado mais representatividade na gastronomia. Em Salvador, o chef Fabrício Lemos, do restaurante Origem, passou a pesquisar os biomas de sua Bahia natal para desvendar os sabores que ajudaram a formar a identidade do povo baiano. No Recôncavo, onde está a maior herança africana do estado, ele buscou preparações e pratos de origem e herança africana que estavam caindo em desuso, ou que já não se encontram mais em outros lugares, para destacá-los em seu menu. É o caso do efó, um refogado feito com língua-de-vaca – um tipo de PANC – que leva camarão seco, amendoim, castanhas. Ou o arroz de hauçá, um arroz de coco com carne frita no dendê e camarão seco.

“É comida simples, mas culturalmente rica. Algumas dessas receitas ainda sofrem algum tipos de preconceito. Tentamos mostrar como elas podem ser gastronomicamente interessantes”, diz ele, que usa técnicas de alta gastronomia e um bocado de criatividade para criar pratos como o abarajé, um tipo de abará que é empanado e frito e servido com vatapá, como em um acarajé. “Hoje, temos visto um esforço de muitos cozinheiros para reconhecer as raízes africanas como uma cozinha patrimonial baiana, utilizando ingredientes locais e técnicas ancestrais”, conta. “Tudo para que a tradição não se perca. A gente vem tornando isso cada vez mais contemporâneo, para trazer ainda mais valorização aos olhos dos clientes.”.

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“Hoje temos visto um esforço de muitos cozinheiros para reconhecer as raízes africanas como uma cozinha patrimonial baiana, utilizando ingredientes locais e técnicas ancestrais”

Fabrício Lemos, chef

Esse orgulho da origem africana tem revertido positivamente também nos cozinheiros negros, que estão encontrando maior representatividade nas cozinhas. “Por muito tempo, os negros eram apenas ajudantes de cozinha. Poucos podiam ascender a uma posição de chef. Quando as primeiras universidades de gastronomia surgiram na Bahia, há dez anos, somente as pessoas com mais condições tinham acesso aos cursos”, ele diz.

Um dos maiores chefs brasileiros dá expediente longe do eixo Rio/São Paulo. Na capital baiana, ele comanda o Origem, o Ori, além de um bar
Um dos maiores chefs brasileiros dá expediente longe do eixo Rio/São Paulo. Na capital baiana, ele comanda o Origem, o Ori, além de um bar (Leonardo Freire - Origem/Divulgação)

Lemos lembra que, em Salvador, 80% da população é negra e mora no subúrbio. “Pouca gente podia estudar. Aos poucos, essa situação e esse estigma têm mudado. Meus sub chefs, por exemplo, têm origem humilde, mas já tiveram formação, estão no caminho para virarem chefs”, ele conta. “Eu acredito que, daqui a 5 anos, teremos, sim, mais chefs negros, não só na Bahia, mas em todo o Brasil. Com mais acesso à formação, a tendência é esse número aumentar”, aposta o proprietário do Origem. Ou, como diz Kwame Onwuachi, o negro sempre esteve presente na cozinha, assim como em todas as outras áreas da sociedade. “Apenas estamos agora, de certa forma, obtendo outro tipo de reconhecimento. Criamos presidentes e chefes de estado. Sempre estivemos por aqui e não vamos a lugar algum”.

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