experimentação

Gastronomia de impacto

Impedidos de atender presencialmente a clientela de sempre, chefs e bartenders engajam-se em alimentar quem mais precisa

por Daniel Salles Atualizado em 25 jun 2020, 10h12 - Publicado em 25 jun 2020 09h58
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(Clube Lambada/Ilustração)

polvo à tasquinha da Adega Santiago, por exemplo, cortado em cubos e servido com limão-siciliano, salsa, cebolas e batatas ao murro. Ou a açorda de camarão da Taberna 474, incrementada com uma gema de ovo insinuante. Ou ainda o arroz da Casa Europa, com carne de porco desfiada, fava verde, repolho, tomate-cereja, brunoise de cenoura, abobrinha e pancetta. Desde o dia 20 de março, degustar qualquer um desses pratos — e todos os outros do grupo Adega Santiago, formado por cinco estabelecimentos em São Paulo e um no Rio de Janeiro — só por meio do delivery. Os motivos são óbvios. A receita adotada pelo grupo para enfrentar a quarentena, no entanto, foge do comum. Além de concentrar esforços para driblar a indigesta e brutal queda de faturamento, a rede resolveu se mobilizar para ajudar a colocar comida na mesa de quem atualmente mais precisa — as famílias, você sabe, chefiadas por trabalhadores informais que, com todo mundo em casa, não têm de onde tirar seu sustento, e aqueles para quem a sociedade sempre deu as costas.

Com o próprio bolso, o conjunto de restaurantes, encabeçado pelo restaurateur Ipe Moraes, adquiriu 350 cestas básicas. A metade delas foi doada para a ONG Capão Cidadão, ligada ao Capão Redondo, e a outra para a Pró Saber, que atua em Paraisópolis, uma das maiores favelas de São Paulo. Outra centena, que teve o mesmo fim, foi amealhada graças a uma promoção vinculada à Taberna 474, situada no Jardim Paulistano. Os clientes que doaram quatro quilos de alimentos não perecíveis, tirando açúcar, sal e farinha, ganharam 30% de desconto até o final da quarentena, apenas para pedidos retirados no local. Um número maior de fregueses, no entanto, desembolsou um montante com o qual foi possível adquirir outras 270 cestas básicas, repartidas entre as mesmas ONGs.

“Mesmo com tudo liberado, quem for mais neurótico ou fizer parte do grupo de risco vai demorar para sair de casa para comer”

Ipe Moraes, restaurateur
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(Ipê Moraes/Divulgação)

“Se é para morrer, vamos morrer abraçados”, diz Ipe Moraes, ao justificar a criação de uma ação solidária quando seus restaurantes estão todos no vermelho. “É o momento de ajudar quem mais precisa”. Com tudo muito recluso, o faturamento do delivery da Taberna 474 duplicou, o da Casa Europa triplicou e o da Adega Santiago aumentou quatro vezes. Mas o que tem entrado em caixa é suficiente só para cobrir as despesas básicas. “O momento mais delicado será o da reabertura das casas”, avalia o empresário. “Demandará muita liquidez para a compra dos ingredientes necessários para o preparo de todas as receitas do cardápio, em quantidades expressivas, e não temos como prever a quantidade de clientes”. Pelos seus cálculos, a ocupação não deve passar de 30% tão logo o atendimento presencial seja permitido. “Mesmo com tudo liberado, quem for mais neurótico ou fizer parte do grupo de risco vai demorar para sair de casa para comer”, resigna-se.

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(Henrique Fogaça/Divulgação)

Dificuldades à parte, Moraes não é o único do ramo que se impôs o desafio extra de ajudar os mais vulneráveis à covid-19. O restaurante Jamile, no Bixiga, do chef Henrique Fogaça, do publicitário Anuar Tacach e de Alberto Hiar, dono da grife Cavalera, tirou do papel a campanha Marmita do Bem. O objetivo é preparar 10 mil marmitas para moradores de ruas, 400 delas distribuídas a cada dia. O dinheiro para a compra dos ingredientes vem de uma vaquinha online hospedada no site Kickante e a meta é amealhar 100 mil reais — até o dia 23 de abril, 96% do objetivo havia sido alcançado.

Na mesma semana, a Cia. Tradicional de Comércio, a CiaTC, dona da Lanchonete da Cidade, da pizzaria Bráz e do bar Pirajá, entre outras redes, começou a preparar 200 refeições por semana e distribuí-las entre moradores da favela Horizonte Azul, na Zona sul de São Paulo. “Que fiquem as boas ações depois da quarentena”, torce o chef Marcelo Tanus, que comanda todas as cozinhas da CiaTC. A quantidade de marmitas doadas diariamente pelo casal Janaina e Jefferson Rueda, que comandam o Bar da Dona Onça e a Casa do Porco: 500. Demandam dois porcos assados por dia e também são destinadas a moradores de rua.

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(Janaina Rueda/Divulgação)

Se conseguiu escancarar desigualdades que muita gente fingia não ver, o novo coronavírus também ajudou a lançar luz sobre iniciativas de longa data da chamada gastronomia de impacto. As que envolvem a Gastromotiva, por exemplo. A ONG foi fundada em 2006 pelo curitibano David Hertz. Nascido em uma família judaica, de comerciantes, ele se formou em gastronomia pelo Senac de Águas de São Pedro e achou seu lugar na profissão em 2004, quando passou a dar aulas em uma favela paulistana. Com braços em São Paulo, Rio de Janeiro, El Salvador, México e África do Sul, a Gastromotiva batalha para combater o desperdício de alimentos e a obesidade e já capacitou em cozinha 3 mil jovens de baixa renda. Na Olimpíada do Rio, abriu na lapa carioca, em parceria com o chef italiano Massimo Bottura, o Refettorio Gastromotiva, restaurante destinado à população de baixa renda.

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A pandemia em curso motivou a criação da campanha de financiamento coletivo #EuAlimentoEsperança, também hospedada na plataforma Kickante. A meta é arrecadar 500 mil reais para permitir a distribuição de 80 mil refeições por mês entre os mais necessitados — mais de um quarto a soma havia sido amealhado até o fim de abril. “Meu sonho é alimentar um milhão de pessoas por mês”, declarou o chef curitibano, que nunca se preocupou em criar pratos instagramáveis ou satisfazer clientes abonados, como muitos de seus pares.

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(David Hertz / Gastromotiva/Divulgação)

A turma que ganha a vida com os balcões também aderiu à onda de solidariedade impulsionada pelo novo coronavírus. A sommelière de cachaças Isadora Bello Fornari está à frente da campanha Distância Próxima, cujo objetivo é angariar recursos para ajudar no sustento de bartenders, garçons e afins. Vários deles foram dispensados tão logo veio a quarentena ou se viram em maus lençóis mesmo com os empregados mantidos. Explica-se: sem as gorjetas e a partilha dos 10%, os ganhos de muitos nesse meio equivalem a quase nada. A campanha funciona assim: a cada 1200 reais obtidos com doações, a cifra é convertida em alimentos, produtos de higiene e medicamentos para um profissional necessitado — estima-se que o setor empregue 6 milhões de pessoas. Para colaborar, basta acessar benfeitoria.com/distanciaproxima“. A chama da solidariedade está novamente acesa”, comemora Isadora. Que não se apague.

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(Elisa Carareto/Ilustração)
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