experimentação

Meio caipira, meio caiçara

De olho na sua origem e buscando uma nova relação com seus ingredientes, a culinária paulista se esforça para resgatar sua identidade esquecida

por Rafael Tonon Atualizado em 19 jun 2020, 19h37 - Publicado em 18 jun 2020 09h55
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(Clube Lambada/Ilustração)

chef Eudes Assis carrega na memória uma lembrança que talvez tenha sido a mais significativa para definir sua trajetória na gastronomia. Depois de finalmente ter conseguido estudar na Le Cordon Bleu, em Paris — um sonho de muito tempo — ele partiu para Lyon, no centro-leste da França, para fazer um curso de confeitaria naquela que é considerada a capital da culinária tradicional francesa. 

Aproveitava o tempo livre para trabalhar em restaurantes locais, a fim de levantar uma grana e, com sorte, colocar em prática os ensinamentos das salas de aula. Ao final do serviço, costumava se reunir com um amigo brasileiro e outros cozinheiros de diversos países do mundo para beber, assar uma carne, socializar. Em um desses encontros, de repente falavam sobre ingredientes. E o que era uma conversa amigável se tornou uma discussão acalorada: espanhóis, italianos, franceses, todos defendendo a superioridade de seus produtos locais como quem advoga pelas conquistas de seu time do coração. Por pouco não saiu briga.

“Aquilo me marcou demais. Nunca vi alguém fazer o mesmo pela cozinha brasileira ou, no meu caso, pela cozinha caiçara”, lembra ele. “Decidi que, quando voltasse para o Brasil, iria tratar de brigar daquele jeito pela culinária de onde eu cresci”. O regresso levou seis anos, passou por alguns desvios que conduziram Eudes a conhecer cerca de 28 países e até trabalhar em restaurantes mundialmente reconhecidos, como o elBulli, na Espanha, e o Daniel, nos Estados Unidos. Mas, quando pisou de novo na areia da praia de Toque Toque Grande, cidade em que nasceu, não teve dúvidas: precisava abrir um restaurante de cozinha caiçara e mostrar que ela tinha uma identidade tão relevante como aquelas defendidas pelos cozinheiros brigões. 

“Decidi que, quando voltasse para o Brasil, iria tratar de brigar daquele jeito pela culinária de onde eu cresci”

Eudes de Assis
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Chef Eudes de Assis
Chef Eudes de Assis (Eudes de Assis/Divulgação)

Hoje à frente do Taioba, em Camburi, litoral norte de São Paulo, Eudes reconhece que conseguiu, aos poucos, fazer as pessoas olharem para seu peixe assado em folha de bananeira, seu arroz lambe-lambe e suas receitas sem técnicas mirabolantes — “mas com grande produtos” — com mais valor. Algo que tem se transformado muito nos últimos anos com o reflexo de uma revalorização da própria cozinha paulista, que também passou recentemente a se voltar para seu interior com o mesmo entusiasmo com que enaltece os sabores que moldaram a sua capital, reconhecidamente a cidade com a mais variada e influente gastronomia do país. 

Chef Eudes e sua mãe, Madá, secando peixe no varal, técnica que preserva o pescado.
Chef Eudes e sua mãe, Madá, secando peixe no varal, técnica que preserva o pescado. (Eudes de Assis/Arquivo)

Resgate cultural 

São Paulo perdeu, com o tempo, sua relação culinária com o próprio território. Tanto a cozinha caiçara quanto a cozinha caipira, duas das bases da formação do mapa cultural alimentar do estado, foram sistematicamente negligenciadas por décadas. Talvez por se tratar da região brasileira que sofreu um processo de urbanização mais intenso, e que, por isso, teve camadas e mais camadas de culturas sobrepostas, principalmente com a chegada dos imigrantes, que adicionaram referências, técnicas e ingredientes a esse caldeirão.

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Mas, hoje, acredita Eudes, as coisas estão mudando. “Quando eu era pequeno, não gostava que me chamassem de caiçara, era algo pejorativo. Hoje, quando falo que faço comida caiçara, as pessoas se interessam, querem saber mais. Elas vêm ao restaurante”, orgulha-se. O chef segue reproduzindo as mesmas receitas que aprendeu com a mãe quando era pequeno — com um pouco das técnicas que absorveu — como o peixe azul marinho (feito em panela de ferro com banana verde que, por uma reação química, acaba tingindo o molho de azul), o pé-de-moleque feito com farinha de mandioca, o arroz de peixe seco com taioba refogada (a planta abundante na Mata Atlântica que dá nome ao seu restaurante). 

Camarão na moranga do Taioba
Camarão na moranga do Taioba (Eudes de Assis/Divulgação)

A cozinha caiçara é uma cozinha de subsistência, de sobrevivência”, ele diz. Como muito da própria cozinha brasileira, teve influência indígena, de onde deriva seu nome (que designava a técnica de pescar à beira do mar), mas também africana e portuguesa — e depois européia, com a chegada dos imigrantes. “Aqui nas nossas praias, houve muitos naufrágios de navios. Esse povo vinha viver na terra e acabava se misturando. A miscigenação é também a marca da nossa cultura”, ele diz. Que agora começa a ser mais valorizada. 

Três pratos do Taioba: garoupa azul marinho, casquinha de caranguejo e arroz lambe lambe de mariscos
Três pratos do Taioba: garoupa azul marinho, casquinha de caranguejo e arroz lambe lambe de mariscos (Eudes de Assis/Divulgação)

Na rota dos tropeiros 

Difícil pensar a cozinha paulista sem miscigenação, aliás. A capital do estado é uma prova dessa mescla: além dos indígenas e dos portugueses, também se estabeleceram na maior cidade da América Latina japoneses, libaneses, sírios, italianos, espanhóis, coreanos, muitos povos nordestinos… Se no interior o fluxo imigratório foi menos intenso, ele certamente não foi menos diverso. 

“A própria herança principal dos bandeirantes e tropeiros, que ajudaram a definir as raízes culturais do estado, é essa mestiçagem, essa aculturação”, defende o chef Marcelo Corrêa Bastos, dos restaurantes Jiquitaia e Vista, com grande foco em comida paulistana. Eles deixaram marcas na culinária paulista que estão presentes até hoje. “Uma delas é o feijão tropeiro, que eu sempre conheci como prato de viagem, inventado por tropeiros, que traz alguns dos ingredientes que mais identificamos com a cozinha caipira de São Paulo”, explica Bastos, que também é co-autor do livro A culinária caipira da Paulistânia.

“A própria herança principal dos bandeirantes e tropeiros, que ajudaram a definir as raízes culturais do estado, é essa mestiçagem, essa aculturação”

Marcelo Corrêa Bastos

Além do feijão, a presença constante do milho, emprestado do universo alimentar dos guaranis, e depois o porco dos portugueses, a galinha e a salsinha ajudaram a criar a paleta de sabores que definiram a culinária paulista. “O porco e a galinha trazidos pelos portugueses vieram substituir as carnes de caça, à medida que o mato foi sendo suprimido por pastos e cercas. Também o uso dos vegetais da horta, especialmente as cucurbitáceas que rodeavam as casas e sítios, como abóboras, abobrinhas, chuchus”, explica Bastos. 

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(Jiquitaia/Divulgação)

Um orgulho caipira

Muito além de uma culinária propriamente paulista, esses ingredientes se tornaram marca de uma cozinha essencialmente caipira que se propagou e ultrapassou as fronteiras do estado, se tornando presente — e até, depois, mais valorizada — em Goiás e, especialmente, em Minas Gerais. “A cozinha paulista não está somente nas divisas de São Paulo. Hoje, identificamos esses ingredientes com a cozinha mineira, que é na verdade a cozinha caipira, paulista ou da Paulistânia, essa região ampla dos caipiras”, defende o chef. 

Para o cozinheiro do Jiquitaia, a cultura caipira, ao contrário de outras culturas regionais, como a gaúcha e a do sertão nordestino, nunca foi muito celebrada em São Paulo, apesar de ter tido sua origem ali.

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(Jiquitaia/Divulgação)

No entanto, Bastos diz que observa um fenômeno interessante tomar corpo nas cozinhas paulistas — e sobretudo paulistanas: inspirados por uma gastronomia de vanguarda internacional (que valoriza o local, o original), chefes de cozinha de bastante relevância têm utilizado técnicas, ingredientes e produtos típicos da culinária caipira, resgatando uma apreciação pela cultura alimentar do estado. 

“Durante as pesquisas para o livro, me deparei com as descrições de um folclorista paulista, com a descrição da dieta do caipira. Ele listava ingredientes como taioba, cará-moela, mangarito, cambuquira entre outros; ingredientes hoje muito difíceis de serem encontrados em qualquer hortifruti, mas vistos com frequência em restaurantes brasileiros muito consagrados, como Maní, Tuju, Corrutela e Lasai” diz ele, que deve abrir em breve um projeto de cozinha essencialmente caipira.

Virado à paulista d’A Casa do Porco
Virado à paulista d’A Casa do Porco (Mauro de Holanda/Divulgação)

De olho no quintal 

O chef Jefferson Rueda, d’A Casa do Porco, também acredita nessa revalorização da cozinha caipira. Ele próprio foi um dos protagonistas nesse movimento ao abrir, no Centro de São Paulo, um restaurante em que resgata algumas das receitas e produtos de sua cidade natal, São José do Rio Pardo, no interior. O carro-chefe da casa, aliás, é o porco assado, uma receita que remonta à história de São Paulo durante a Guerra do Paraguai, quando o hábito de assar o animal inteiro era uma tradição que se perpetuou. 

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“Vivemos tempos em que aprendemos a valorizar a essência das coisas, o simples, a natureza. Ficamos distantes demais da roça, e a melhor forma de trazê-la de volta pra nossa vida é através da comida”

Jefferson Rueda

“O porco foi determinante para a cozinha paulista, seja como carne ou produtor de banha, elemento central na conservação. Por muito tempo, diziam que era possível reconhecer um legítimo paulista até mesmo em outras regiões porque ele sempre tinha um porco no quintal”, diz. Ao tratar o animal caipira como a sua estrela maior, Rueda diz que seu objetivo era acabar com estigmas da cozinha rural paulista, aquela que ele conheceu desde cedo. “Na casa da minha mãe, tínhamos horta no quintal, criávamos animais. Mais do que uma cozinha, trata-se de um modo de lidar com o alimento que temos visto ser resgatado cada vez mais”, afirma o chef, que têm se dedicado à cozinha paulista e às pesquisas de suas tradições. 

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(Marcus Steinmeyer/Divulgação)

Rueda, que já cria seus porcos no interior do estado, diz que agora têm privilegiado ainda mais ingredientes e até saberes que vêm da roça, com uma origem fundamentalmente caipira. Se a cultura caipira foi desprezada por muito tempo e suprimida por anos por representar algo até então visto como arcaico, ele defende que ela tende a ser cada vez mais assimilada e engrandecida na gastronomia paulistana e brasileira. “Vivemos tempos em que aprendemos a valorizar a essência das coisas, o simples, a natureza. Ficamos distantes demais da roça, e a melhor forma de trazê-la de volta pra nossa vida é através da comida”, ele diz. “Caipira, sim, antiquada, não mais”.Meio caipira, meio caiçara

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