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Será que morreu ou foi só um ghosting?

As relações da era digital recriaram os contratos sociais entre as pessoas. Porém, por não serem bem estabelecidos, geram tensões e conflitos

por Beatriz Lourenço Atualizado em 6 abr 2021, 22h18 - Publicado em 2 abr 2021 00h48
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(Arte/Redação)

utro dia estava esperando uma resposta que nunca chegou daquele contatinho que tinha começado a conversar. Quando fui procurá-lo nas redes sociais, vi que tinha sido bloqueada de sua conta. Porém, que atire a primeira pedra quem nunca deixou de responder alguém por medo de terminar, por preguiça ou apenas porque esqueceu que tinha uma mensagem pendente. Essa é a principal característica do ghosting, termo que vem do inglês “ghost” (fantasma, em tradução livre) e significa algo como sumir de uma relação sem finalizá-la.

Foi o que aconteceu com a comunicadora Veronica Oliveira, dona do perfil Faxina Boa (@faxinaboa), que fez uma viagem de um dia a trabalho e, quando voltou, seu marido havia ido embora sem dizer nada. “Eu percebi que ele se sentiu chateado de não ter ido comigo, mas achei que estava tudo bem. Logo que cheguei em casa, reparei que as coisas dele não estavam mais lá. Ao longo do tempo, vi que ele também levou eletrodomésticos e até alguns alimentos, como o azeite que a gente gostava”, relembra. “Mandei mensagens, mas não fui respondida. Após alguns dias, uma advogada entrou em contato comigo para dar entrada no divórcio. Em momento algum conversamos sobre o que estava acontecendo.”

Embora essa prática seja antiga e se assemelhe aos contos do marido que foi comprar cigarro e nunca mais voltou, ela está cada vez mais comum nas relações contemporâneas. O publicitário Joe de Martine conta que já foi alvo de, pelo menos, quatro fantasmas. “Da última vez, conheci um garoto pelo Tinder e saímos por algum tempo. Certo dia, ele veio em casa para conversarmos e assistirmos a um filme e, na hora de ir embora, disse ‘a gente se fala’. Eu logo soube que eram suas últimas palavras. Depois disso, trocamos algumas mensagens e ele nunca mais me respondeu. O problema é que ele levou uma blusa que eu gostava muito e agora não tenho como recuperá-la.”

Para entender o fenômeno tão criticado, é preciso voltar algumas casas e olhar para as novas dinâmicas que a era digital trouxe para a sociedade, como a maior conectividade e o surgimento dos aplicativos de relacionamentos – que ampliam a rede de contatos e proporcionam rapidez na hora da paquera.

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(Colagem sobre foto de Priscilla Du Preez/Unsplash)

Relações sem fronteiras

Segundo o antropólogo Michel Alcoforado, antes da internet havia uma espécie de contrato social preestabelecido que consistia em conhecer alguém, namorar e casar. Porém, tudo isso mudou no século 21. Em sua pesquisa Relações Beta: experimentações do desejo, ele mostra que a mudança do canal de comunicação real para o online gerou uma reorganização do processo de flerte e da construção de um casal. Isso porque o fluxo da internet não tem inícios e fins delimitados, deixando o acesso aberto enquanto houver qualquer manifestação de desejo. “As conversas dos apps são contínuas, ninguém termina nada. Pensando nessa lógica, uma vez que o canal de comunicação nunca se fecha, o ghosting digital não existe”, explica.

A advogada Tayná Nosete, por exemplo, usa o Tinder, o Happn e o Facebook Dating para conhecer potenciais parceiros. Ainda assim, apesar de inúmeros matches, poucas conversas engatam e viram um date. “Logo que fiz o download, tentava conversar com todo mundo. Mas, com o tempo, o interesse vai passando. É difícil puxar assunto com pessoas que eu não conheço, aí tem dias que não respondo ninguém”, conta.

Se, por um lado, multiplicam-se o número de ferramentas que permitem o contato com novas pessoas, por outro há a percepção de que está mais difícil de se relacionar. Essas tensões ocorrem porque as regras de etiqueta não verbalizadas são fluidas e pouco definidas, gerando um conflito de comunicação entre o casal. “Se antes os indivíduos sabiam que estavam namorando a partir de um pedido de namoro, hoje já não é mais assim. O que acontece muitas vezes é que cada um está em um estágio diferente do encontro, mas ninguém diz nada, ficam sabendo por pequenos sinais que tentam identificar ao longo da relação”, diz o especialista.

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(Colagem sobre foto de We Vibe/Unsplash)

Efeito pandemia

A chegada da covid-19 e da necessidade do isolamento social potencializou a bagunça na vida dos solteiros. Pensando nisso, os influenciadores Carol Tilkian e André Lage, do canal Soltos S.A, resolveram mapear o comportamento dos paqueradores durante a pandemia. O estudo, que envolveu 1450 pessoas, surpreendeu ao mostrar que, apesar das reclamações, 51% dos respondentes assumiram que pararam de responder o crush do nada – destes, 54% foram mulheres e 46%, homens. Já o índice de quem assumiu ter recebido ghosting é de 38%, ou seja, mais pessoas sumiram do que foram abandonadas. Além disso, os resultados destacam que a tendência aconteceu mais com homens homossexuais (47%).

Nesse momento, o chamado curving também foi intensificado, um tipo de rejeição mais sutil que pode aparecer de diversas maneiras, como uma conversa na qual apenas uma pessoa puxa assunto, quando alguém demora dias para responder ou até mesmo responde, mas envia aquela mensagem seca que faz acabar a conversa. “Eu acho que isso é mais presente do que o próprio ghosting, é a boa e velha cozinhada. A pessoa vai se afastando para que você perceba que ela não está tão interessada. No entanto, não some o suficiente porque se mudar de ideia, ainda há aquela porta aberta”, afirma Tilkian.

Para a influenciadora, isso ocorre porque as pessoas estão cobrando definições de relacionamentos muito rápido e não estão respeitando o tempo necessário para se conhecerem, aí a ansiedade acaba minando o que poderia existir no futuro. “Precisamos respeitar o timing. Muitas vezes estamos focados em outras áreas da vida ou até em outras pessoas. Está tudo bem parar de falar com alguém e mudar de ideia depois se você fizer isso com respeito”, diz. Na pesquisa, 14% dos participantes disseram que enviaram aquela mensagem de “oi, sumido” para alguém, 17% mandaram o “sonhei com você” para o ex e 42% admitiram que deram corda para quem não estava afim só para segurar a carência.

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(Colagem sobre foto de Priscilla Du Preez/Unsplash)

Emocional abalado

No romance Copo vazio, da psiquiatra e escritora Natalia Timerman, a personagem central Mirela se apaixona por Pedro que, sem mais nem menos, desaparece de sua vida após alguns meses de envolvimento. Entretanto, após o sumiço repentino, a garota se vê devastada e obcecada tentando entender o que aconteceu – e isso acaba a prejudicando em diversas áreas da vida, inclusive no trabalho. Entre atos desesperados, a protagonista vai até a casa de seu amado, escreve cartas e envia incontáveis mensagens. Mesmo com o passar dos anos, o sentimento devastador ainda existe em seu coração. “Nos encontros, o amor que é vivido através do toque, do cheiro e das conversas, cresce, ficando mais real. Quando a pessoa não dá mais satisfação, isso pode causar diversas consequências negativas para a saúde mental de quem ficou, gerando uma tristeza muito grande, uma sensação exacerbada de vulnerabilidade e até uma culpa que pode afetar relacionamentos futuros”, conta Timerman. “Nos meus estudos, aprendi que a dor do abandono pode se tornar tão grande e física ao ponto de passar com remédios analgésicos”.

Ao mesmo tempo, a pessoa fantasma geralmente some por ter dificuldade de lidar com os próprios sentimentos, por não saber o que quer, por medo de se posicionar ou até mesmo não se sentir confortável com confrontos e discussões. Para a autora, também há o receio de machucar o outro. “No fundo, quem vai embora tem um motivo, mesmo que não tenha a ver com o outro. Precisamos parar de achar que esses são os vilões”, reflete.

A artista Bárbara, após um date ruim, não soube como dizer que não queria mais. “Marquei de sair com uma garota e ela chegou para me buscar em casa com um amigo, achei estranho, mas tudo bem. Ficamos rodando pela cidade por volta de quatro horas tentando encontrar um lugar para ir. Após eu sugerir vários e eles não toparem nenhum, comentei de uma festa que meus amigos estavam dando e acabamos indo. Chegando lá, eu entrei e os dois desistiram. Passei nervoso e não houve uma conexão, por isso nunca mais nos falamos”, conta. “Não foi um ghosting por maldade”. Essa também foi a única saída da jornalista Fernanda Talarico, que se viu em um relacionamento no qual não estava feliz, mas não sabia como conversar com o parceiro. “Saí com uma pessoa por dois meses e fizemos um acordo de que tudo bem se ficássemos com outras pessoas. No entanto, isso me deixava chateada e eu não sabia como elaborar o sentimento. Aí me afastei porque essa foi a única solução que eu encontrei no momento”, relata.

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(Colagem sobre foto de Anna Shvets/Pexels)

Aconteceu comigo, e agora?

Quando o ghosting chega e, com ele, a bad vibes e a frustração, é preciso lembrar que todo o vazio é um espaço que pode ser preenchido com outros elementos. “Para alguns, é possível canalizar essa dor e criar algo a partir dela como uma música, um quadro ou qualquer tipo de arte. Além disso, se a pessoa não quis ficar, pressupõe uma relação que já não seria de tanta parceria assim”, afirma a escritora.

Já o especialista em relacionamentos Mauricio Patrocinio acredita que questionar a modernidade, ir atrás de quem foi embora e ficar pensando nisso o tempo todo pode ser prejudicial. “Talvez não seja preciso saber o motivo pelo qual a pessoa se afastou. Se ela não quer falar, identifique quais foram os pontos positivos e negativos do que aconteceu. Veja quais são as críticas que cabem a ela e as que cabem a você. Esse é um processo de autoconhecimento que pode te fazer uma pessoa melhor”, indica. Se desconectar das redes, descobrir novos interesses e ocupar o tempo de uma forma produtiva é ideal para superar um término. Aqui, a ideia de amor próprio é essencial. “Queremos ser amados o tempo todo, mas precisamos estar completos antes de amar o próximo”.

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