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Jacqueline Chanel: pelo direito à fé

A líder religiosa trans evangélica que criou uma igreja inclusiva após ser expulsa da Universal

por Eduardo Ribeiro Atualizado em 9 fev 2021, 11h07 - Publicado em 9 fev 2021 00h26
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(Clube Lambada/Ilustração)

acqueline Chanel, 56 anos, é uma líder religiosa trans evangélica que nos últimos tempos fez sua caminhada na militância pelos direitos LGBTQIA+ voltando-se contra autoridades de círculos religiosos pelos quais já andou em busca de acolhimento. Veterana, porém, bem antes disso ela organizou o primeiro movimento de luta pela diversidade de gênero no Pará, no início da década de 1990. Era o MHB (Movimento Homossexual de Belém), que contou com a ajuda de Luiz Mott, professor e antropólogo, articulador do GGB (Grupo Gay da Bahia). Nascida em uma família de relações conturbadas, mas dona de fé inabalável, frequenta cultos evangélicos desde os 13 anos, quando foi deixada pela mãe na sede da Igreja do Evangelho Quadrangular.

Jacque nunca entendeu a razão pela qual travestis e transexuais não eram bem recebidas nas igrejas, a não ser quando o motivo fosse a busca pela “cura”. A mesma razão pela qual sua mãe biológica a abandonou aos cuidados do pastor Rui Beckman, acreditando na capacidade dele de consertar o jeito “afeminado” da garota. Os progenitores de Jacque tiveram, ainda, outros dois filhos, que, apesar de se serem um rapaz gay e uma moça lésbica, pelo fato de não exibirem trejeitos “afeminados” ou “masculinizados” no convívio social sofreram menos do que ela: renegada pela família e em outros cultos que tentou frequentar após a morte a tiros de seu pastor, em 1983, não conhece outra realidade senão aquela em que nunca pode deixar de brigar por coisas básicas, como o direito à fé e de poder ser o que se é.

Expulsa da Universal e de uma igreja pseudo inclusiva, ela, que iniciou a transição de gênero aos 23, vive hoje em São Paulo, onde virou cabeleireira e maquiadora e foi recentemente eleita organizadora da Caminhada Trans da capital paulista. Além disso, dedica boa parte de seus esforços ao Projeto Séforas, uma iniciativa criada para reunir pessoas trans e travestis que não tenham achado conforto nas igrejas evangélicas tradicionais. As atividades do grupo, que já existe há sete anos, por enquanto, ocorrem sob o teto da ICM-SP (Igreja da Comunidade Metropolitana de São Paulo). Mas o Séforas, cujo nome faz referência à companheira de Moisés na Bíblia, “uma mulher muito proativa”, nas palavras da líder, logo terá sua sede própria. Foi o que revelou Jacqueline Chanel nesta franca conversa com a gente.

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(Natalia Pilati/Fotografia)

Você foi abandonada pela mãe por ser trans, na sede da Igreja do Evangelho Quadrangular, em Belém, onde viveu dos 13 aos 19 anos. Seus pais eram evangélicos?
A minha mãe me entregou numa igreja fundamentalista evangélica, mas ela não era evangélica, ela era católica.

A sua mãe não confiava que uma igreja católica aceitaria cuidar de uma criança?
Não sei… do jeito que a gente escuta histórias de padres pedófilos, talvez eu fosse muito bem aceita [risos]. Mas acho que, pelo fato de eu ser afeminada, talvez não teria sido aceita, né, porque o que escuto são histórias dos coroinhas, dos meninos, com aparência e jeito de meninos…


“Quem me olhava, me via como uma criança afeminada e tal, mas, por dentro de mim, eu não sabia o que era, não tinha essa identificação, essa identidade. Eu só sabia que era uma criança diferente dos meninos”

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Pelo que entendi da história, o maior incômodo era em relação ao seu “jeito afeminado”. Nessa época, você já tinha consciência de que era mulher?
Não, imagina! Eu não tinha essa consciência, não, de forma alguma. Fui uma criança, tipo assim, digamos, com um retardo [risos]. Tive um problema na questão sexual, um retardo… e, ainda, para completar, a minha mãe me colocou na igreja… pronto! No período em que fiquei na igreja, fiquei praticamente assexuada. Quem me olhava, me via como uma criança afeminada e tal, mas, por dentro de mim, eu não sabia o que era, não tinha essa identificação, essa identidade. Eu só sabia que era uma criança diferente dos meninos, eles tinham outro comportamento. Todos tinham pomo-de-adão, eu não tinha; eles não tinham anca lateral, o quadril, e eu tinha. Então eram coisas que me tornavam diferente deles, das outras crianças da época. Eu já tinha passado dos 7 anos e percebia uma diferença absurda. Na época, as oficinas mecânicas soltavam muitos calendários de mulheres peladas, calendários de bolso. Na minha turma, os meninos levavam aqueles calendários para a sala de aula e ficavam esfregando no piu piu [risos], e eu dizia “Gente do céu, que coisa estranha! Não sinto a menor vontade de fazer isso!” Eram coisas desse tipo que me tornavam diferente, mas eu não sabia exatamente me identificar, o que eu era. Além do quê, naquela época, na sociedade, as pessoas afeminadas, os gays mais espalhafatosos, eram tratadas tudo como “mariquinha”. Todos me tratavam assim, como maricas. Ficava me perguntando por quê, mas não tinha uma resposta para mim mesma, porque eu imaginava que era aquilo que eles estavam falando, na realidade. Só que eu não sentia absolutamente nada. A única coisa que eu podia ver de concreto eram essas diferenças… que eu tinha o peitinho já saliente…

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(Natalia Pilati/Fotografia)

Ao longo do tempo em que você viveu no templo, o que lhe passava pela cabeça?
Foi um período de muita reflexão mesmo, somente isso.

Você sempre conta da sua mãe ter te levado embora, mas não costuma falar de seu pai biológico. Ele jamais interferiu na decisão de sua mãe?
Mantive ele em silêncio na história porque no momento crucial, em um almoço, de eu falar para todos eles quem eu era na realidade… Isso foi aos 22 anos, eu já havia saído da igreja porque meu pastor tinha sido assassinado, e nesse período é que fui me resolver. Um belo dia, então, me revelei para eles. Senti essa necessidade porque eles poderiam até desconfiar e tudo mais, mas eu não havia nunca dado essa certeza. Nesse momento, quem se manifestou veementemente contrária foi a minha mãe, e não o meu pai. Ele ficou em silêncio. E só foi se pronunciar em outro momento.


“Um belo dia, então, me revelei para eles. Senti essa necessidade porque eles poderiam até desconfiar e tudo mais, mas eu não havia nunca dado essa certeza. Nesse momento, quem se manifestou veementemente contrária foi a minha mãe, e não o meu pai. Ele ficou em silêncio”

O pastor que recebeu você no templo, o Rui Beckman, seu pai de criação, foi morto a tiros por traficantes do bairro, em 1983. Você caiu no mundo depois disso? Como foi?
Quando meu pastor foi assassinado, pedi a eles para voltar para casa. Voltei, só que a convivência com o meu irmão e a minha irmã foi ficando muito difícil, muito embora minha irmã fosse lésbica e o meu irmão fosse gay. Só que ele era um gay enrustido, não aceitava brincadeiras. Um dia, eu o encontrei numa quadrilha lá em Belém. Lá acontecem umas quadrilhas trocadas, o homem se veste de mulher, e a mulher se veste de homem. E ele estava lá na quadrilha soltando a franga [risos], aproveitou a quadrilha para isso. Cheguei em casa, contei para a minha mãe e meu pai, e ele ficou atacado! Tivemos uma briga muito feia, que ele me jogou um tijolo nas costas – a casa estava em construção, tinha tijolo para todo o lado. Depois dessa confusão toda, meu pai me chamou e disse que queria que eu saísse de casa porque, diante daquela situação, ele estava aproveitando para me pedir para sair porque sentia vergonha de mim. Ele não tinha vergonha dos outros filhos porque eles não chamavam tanto a atenção quanto eu, porque eu trazia a questão da travesti para eles. Naquela época não existia “trans”, existia travesti.

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E isso, para eles, soava como marginalidade, prostituição?
Era a forma como eles me encaravam. Isso infelizmente acontece até hoje, independente do grau de escolaridade dos pais. Os meus eram absolutamente analfabetos, mas você vê esse mesmo tipo de pensamento em pessoas que são graduadas. Aí eu fiquei mais um tempo morando em Belém, morando sozinha. Quer dizer, na época eu era casada, então morava com um rapaz. Depois ele sumiu, um tempo que a gente brigou, a família dele chegou a me acusar de tê-lo assassinado, foram para a televisão e tudo o mais. Assim que isso se resolveu, que ele apareceu, foi que tomei mais força para ir embora de lá. Foi quando vim para São Paulo, no ano de 1992, aos 28 anos.

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(Natalia Pilati/Fotografia)

Da parte do pastor Rui, apesar de sua mãe ter confiado a ele a missão de fazer com que você deixasse de ser “afeminada”, ele próprio não tentava lhe impor nenhuma mudança de comportamento, né?
A única coisa que ele fez questão de mostrar para mim foi tudo o que ele podia dentro do evangelho. Mostrar o caminho que eu deveria seguir, e essa foi a melhor parte, a melhor coisa que ele me deixou. Hoje, sou uma pessoa totalmente diferente da maioria das trans justamente por causa dessa parte da minha vida, que foi viver intensamente o evangelho. Porque eu só ia para a escola, e de lá, voltava para a igreja. E ali eu fazia tudo da igreja, limpeza, decoração, participava das reuniões, grupos de jovens, de senhoras, tudo quanto era reunião, eu participava. Ao mesmo tempo em que isso foi meio alienante, foi libertador, porque você sabe que quem está voltado para a religião jamais estará voltado para a marginalidade. Virei um ser humano muito melhor, independente da questão da identidade de gênero. E dou graças a Deus por essa passagem, por ter vivido com esse pai. Para mim, ele foi um pai.

Quando ele morreu, você se afastou da religião por algum momento?
Acredito muito na escolha de Deus para nossas vidas. A partir do momento em que fui escolhida, fui preparada para viver o que estou vivendo hoje. Com a morte dele, fiquei longe da religião apenas o tempo necessário para que pudesse me recompor e, ao mesmo tempo, me reencontrar. Naquele instante, não queria voltar para a igreja por causa das lembranças do meu dia a dia com ele, e também porque, ao mesmo tempo, senti o gostinho da liberdade. Era a liberdade que eu precisava para me encontrar, resolver os meus problemas, todos relacionados à sexualidade.

“Acredito muito na escolha de Deus para nossas vidas. A partir do momento em que fui escolhida, fui preparada para viver o que estou vivendo hoje. Com a morte dele, fiquei longe da religião apenas o tempo necessário para que pudesse me recompor e, ao mesmo tempo, me reencontrar”

E depois disso?
Aí veio uma outra fase, em que eu voltaria mais feminina ainda. Mais feminina e mais resolvida. E, agora, com um grande problema, porque eu não consegui voltar para aquela igreja e tinha que encarar uma nova igreja, outras igrejas, onde as pessoas me viam como aquela figura feminina e se aproximavam imediatamente de mim para me dizer que eu tinha o “espírito da pombagira”, com uma conotação negativa. Eu não conseguia mais me encaixar. Enquanto estava lá atrás, tudo bem, no último banco. Mas se eu tentasse me aproximar de alguma atividade da igreja, pronto!

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Você sofreu preconceito em todas as igrejas evangélicas que tentou frequentar?
Olha, eu não sei quantas igrejas evangélicas existem ao todo, mas acho que passei por quase todas que você possa imaginar, tanto lá em Belém como aqui em São Paulo. Sempre com a sensação de ser um extraterrestre dentro daqueles espaços. Um E.T. demonizado, entendeu? Porque eu era demonizada dessa forma… É assim que as igrejas fundamentalistas demonizam uma trans, uma travesti. E, aqui em São Paulo, por incrível que pareça, foi muito pior do que lá em Belém. Aqui, que é uma metrópole, um lugar onde jamais esperava passar pelas situações que já passei e vivi aqui… Você acredita?

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(Natalia Pilati/Fotografia)

Como foi a história do pastor que te expulsou da igreja na frente de todo mundo?
Eu comecei a frequentar uma Igreja Universal que era perto de casa, mas sempre me sentava no fundo do culto. Mesmo lá no fundo, como eu tinha toda aquela experiência, passei a visualizar quem era gay, quem era lésbica… aquelas pessoas que conseguia identificar, eu me aproximava e iniciava uma conversa e tal, aí já chamava outra pessoa para participar do grupo… Assim, fui formando um grupo de umas dez pessoas mais ou menos. Até que um dia, aquele grupo já estava todo sentado nas cadeiras, totalmente empoderadas da fé, como se ali fosse uma igreja inclusiva. Mas não funcionou por muito tempo. Aconteceu que esse pastor, que inclusive vive fazendo programa da Universal, nos chamou lá na frente, todo o grupo, fez um sermão, e disse que nós estávamos expulsas da igreja. Ele nos convidou a se retirar prontamente. Isso aconteceu aqui, na Avenida  Brigadeiro Luís Antônio, pertinho da Paulista.

É surpreendente a quantidade existente de religiosos como este, que agem de modo inverso à essência da filosofia atribuída a Jesus Cristo.
É… você vê a passagem típica, em que ele diz: “Quem não tiver pecados que atire a primeira pedra.” E você vê ali um show de inclusão, de acolhimento, amor, né! Isso há mais de dois mil anos. Totalmente libertário, Jesus era uma pessoa à frente de seu tempo. Não foi à toa que se fez a divisão do tempo em antes de Cristo e depois de Cristo. Se hoje aconteceria a mesma coisa, imagine naquela época, em que a mulher não era nem contada como ser humano. A mulher estava na contagem dos animais, para você ver o tanto que ele afrontou toda uma sociedade. É por isso que sou afrontosa também [risos]. Eu não enfrentei meu pastor? Fui expulsa até de igreja inclusiva.

Como é possível uma igreja que carrega a tarja de “inclusiva” expulsar alguém?
É, mas isso aconteceu comigo, aqui em São Paulo. Fui expulsa de uma igreja inclusiva, você acredita nisso?


“Totalmente libertário, Jesus era uma pessoa à frente de seu tempo. Não foi à toa que se fez a divisão do tempo em antes de Cristo e depois de Cristo. Se hoje aconteceria a mesma coisa, imagine naquela época, em que a mulher não era nem contada como ser humano. Jesus afrontou toda uma sociedade. É por isso que sou afrontosa também”

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Acho totalmente contraditório…
Totalmente contraditório, mas foi isso mesmo. As pessoas são assim. Mesmo sendo esse evangelho inclusivo, entre aspas, me botaram para fora.

Sem mais nem menos?
Uma das coisas é que meu trabalho com as travestis e transexuais estava se destacando muito. Só que o presidente dessa igreja era um gay machista, ou seja, a figura feminina não poderia se destacar mais do que a dele. Começa assim. Depois que saí, fiquei sabendo que chegaram a achar uma camisinha, ao final de uma de nossas reuniões, no toalete. Quem usou aquela camisinha? Houve uma tentativa de forjar que eu, Jacque Chanel, teria usado. “Terminou a reunião, ela colocou um boy para dentro, usou a camisinha e deixou lá, porque ela é burra e fez isso para produzir prova contra si” [risos]. Isso passou pela cabeça do cidadão.

Então não era uma igreja inclusiva, mas exclusiva para gays, e você foi lá causar? [risos]
[risos] Olha a situação: num mês, fui chamada para receber parabéns. Foi numa época de Natal, ganhei uma viagem para o Sul com tudo pago pela igreja, onde se encontrariam as lideranças do país. No mês seguinte, me chamaram para me expulsar. Tudo contraditório. Aí me fizeram uma proposta: que eu continuasse dando a cara para o ministério, mas que não estaria mais na liderança, de fato, pois era ele quem passaria a presidir. Você acha que eu me prestaria a um papel desses? Nunca! Que não contem comigo para isso. No dia seguinte, coloquei minha carta no Facebook pedindo o desligamento da igreja.

Infelizmente esses relatos não surpreendem, pois a história está cheia de atrocidades cometidas atrás de uma fachada religiosa, em nome de Deus.
As pessoas se esquecem de que elas são humanas. Elas esquecem que, colocou o pezinho aqui, saiu da barriga mãe, está pecando, é pecador igual a qualquer um. Aí a pessoa se cria, estuda e tudo mais, faz uma graduação em teologia, e se acha o Deus, que tem o poder de manipular todas as demais e também a verdade. Você vê aí, esse caso da Flordelis, é típico desses falsos profetas. E você vê o absurdo que as pessoas vivem fingindo uma outra situação, posando de Sumo Sacerdote, de santidade, “Deus acima de tudo”. Quando se fala “Deus acima de tudo”, é como se o indivíduo estivesse se colocando na posição de Deus. O absurdo que a Flordelis fez é porque ela estava se sentindo o próprio Deus. Tipo assim, como se nada lhe pudesse tirar daquela posição em que ela manipulava a verdade. E todos têm esse mesmo comportamento.

Esse presidente da igreja que te afastou, você sabe que fim deu?
Depois de apenas um ano, ele foi filmado dentro do banheirão fazendo aquelas orgias junto do marido. A igreja acabou, fechou, e o conselho tirou ele do pastorado. Por aí você tira: se Jesus voltasse hoje, ele faria o mesmo que fez com aqueles sacerdotes daquela época em que passou por aqui. E essas pessoas de agora, que se dizem os sacerdotes, os donos da Bíblia, os guardiões da palavra, teriam o mesmo comportamento para com Jesus. E iriam crucificá-lo novamente, não tenho a menor dúvida disso, infelizmente. É o que aconteceria. Aliás, acho que você encontra mais novas versões de Caifás por aí do que se possa imaginar [risos].

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“Se Jesus voltasse hoje, ele faria o mesmo que fez com aqueles sacerdotes da época em que passou por aqui. E essas pessoas de agora, que se dizem os sacerdotes, os donos da Bíblia, os guardiões da palavra, iriam crucificá-lo novamente, não tenho a menor dúvida disso”

Quantas pessoas você já conseguiu reunir nos cultos do Projeto Séforas?
Já consegui reunir 200 travestis e transexuais. Você tem noção do que é reunir 200 travestis e transexuais para assistir a um culto? Para orar, louvar junto comigo, escutar uma breve reflexão e compartilhar o alimento, ou seja, a ceia? Isso é muito. É extremamente difícil de acontecer. Mas acontece porque a maior parte das meninas têm um histórico de sofrimento, de terem sido expulsas de casa e toda a situação decorrente disso, de irem para a rua, normalmente, cedo. Outra coisa que acontece é que todas compartilham um histórico de terem sido levadas para a igreja, justamente com os pais nessa expectativa da “cura”: “Ah, vou levar o meu filho para a igreja porque vai ser curado e deixar de ser gay, trans ou travesti.” Por aí. Quase todas tiveram essa experiência de vida com Deus em suas infâncias. Quando fui convidada a assumir o Ministério Séforas – o meu trabalho começou como “ministério” e acabou virando “projeto”; para que eu não perdesse a referência do trabalho tive a preocupação de manter o nome –, o primeiro evento que fiz foi a Primeira Conferência Trans e Religiões. Convidei a militância toda de São Paulo, umas oito representantes, mais ou menos, entre elas um homem trans, para que ninguém dizer que eu estaria puxando a sardinha só para o nosso lado [risos] para falar do assunto. E qual não foi minha surpresa: a maioria tinha um histórico, uma experiência com Deus, com exceção de só uma ou duas, mas que disseram ser conhecedoras profundas da Bíblia.

Ao final dessa conferência, pedi a uma trans que estava junto comigo, iniciando o Ministério Séforas, que cantasse um louvor. Quando ela foi à frente e começou a cantar um louvor bem conhecido, do Régis Danese, de uma forma muito emocionante, todas as trans começaram a chorar. Ali, vi o quanto Deus pode trabalhar no coração dessa comunidade. Até então, não estava como líder do ministério, mas enxerguei naquele momento a possibilidade de se fazer um grande trabalho. Quando recebi o ministério, disse “Meu Deus do céu!” Porque imaginei que fosse pegar pessoas muito difíceis para aceitar uma palavra, um momento de evangelização, um louvor, um culto… Mas, lembrando dessa experiência, imaginei que talvez não seria tão difícil assim. E, realmente, não foi. Hoje, vejo pessoas reproduzirem o mesmo trabalho e fico super feliz porque tem tido aceitação. Claro que é um trabalho de formiguinha, estou há oito anos desempenhando, mas já começo a ver frutos. E, agora, estou mais feliz ainda porque estou tendo apoio da Parada e, provavelmente, dependendo da pandemia, vamos abrir a primeira igreja trans do país, pelo Projeto Séforas, no Largo do Arouche.

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(Natalia Pilati/Fotografia)

E você também realiza um trabalho de distribuição de marmitas ali na região…
Sim, esse trabalho começou justamente por elas. Quando conheci as ruas onde normalmente elas ficam, como moradoras de rua, me assustei com o número de travestis e transexuais que estavam naquela situação. Então, pensei, “A gente precisa fazer um trabalho que alcance essas meninas.” Foi aí que começamos a fazer, principalmente agora, na pandemia. Mas eu já fazia isso nas nossas reuniões, que começaram como “Trans Café” e, depois, passei para “Jantar Trans”. Inicialmente, servia só café com umas torradas e bolachas. Comecei a perceber que elas vinham famintas, que aquilo era a primeira refeição do dia. Por isso, senti a necessidade de oferecer o jantar. Do jantar, veio a distribuição de marmitas, mas no começo eram 100, 150, na região do Minhocão, que era perto da igreja.

Você tem o suporte da comunidade evangélica em geral neste trabalho?
Nada! Agora na pandemia, inclusive, o pastor me proibiu de fazer essa entrega, mas como já tinha tido uma experiência desagradável com a liderança, não acatei, fui ousada e fui para frente, num momento em que não tinha ninguém na rua prestando assistência. Comecei a levar 250, aí foi para 300, e agora estou levando 500 a cada vez que vou. Faço três vezes por semana. Comecei a fazer aqui perto de casa, na Av. Cruzeiro do Sul, e me assustei com o número de travestis que tinha lá também. Teve a maior repercussão quando os vídeos começaram a rolar, e eu chamava, na caixa de som, a organização. Primeiro, a fila de mulheres, crianças, travestis e transexuais. Depois, a fila de idosos. Por fim, uma terceira fila para o restante. Isso chamou muita atenção porque eu faço uma fila específica para mulheres, travestis e transexuais. Esse cuidado é o mínimo que tenho que demonstrar para a minha comunidade, que é muito sofrida. Não é que a gente queira se fazer de coitada, não, é bem isso que acontece. Essas igrejas que se dizem inclusivas não têm trabalho voltado para acolher travestis e transexuais. Não tem trabalho para evangelizar, falta uma preocupação com essa comunidade nas ruas, nas esquinas. Não existe trabalho para abrir um espaço para uma travesti e transexual. Agora, como reflexo do meu trabalho, é que algumas coisas começaram a ser articuladas, mas normalmente não tem. É tipo assim: existem 200 membros gays na igreja para duas ou três travestis ou transexuais. E a pessoa, descaradamente, diz que tem trabalho para essa comunidade, que continua sendo excluída.


“Essas igrejas que se dizem inclusivas não têm trabalho voltado para acolher travestis e transexuais. Não tem trabalho para evangelizar, falta uma preocupação com essa comunidade nas ruas, nas esquinas”

Você acha que o conservadorismo instaurado nas igrejas fundamentalistas faz com que muites trans e travestis acabem entendendo religião como algo inerentemente reacionário?
A maior parte tem essa visão. Esse comportamento radical em relação à religião é adquirido porque, de repente, a pessoa teve uma experiência muito superficial. Só continuei porque a minha experiência foi grandiosa, né, e levei, dos 13 até os 19 anos dentro de uma igreja, vivenciando toda a fé, tendo experiências e mais experiências, então isso me segurou. Porque, se não, estaria aí nessa estatística de pessoas que não acreditam. E não são somente LGBTs, há pessoas heteronormativas que possuem a mesma queixa, de não aguentar essas coisas que acontecem dentro das igrejas, que elas não suportam essas coisas… Você imagina os membros da igreja da Flordelis?! É claro que, talvez, a maioria tenha ficado até do lado dela, mas existe também um grande e considerável número de pessoas que se afastou de Deus com certeza por causa desse tipo de comportamento e atitudes. E isso é muito triste, ao mesmo tempo em que também é lamentável que muitos líderes religiosos não tenham preocupação com as almas que deveriam ter.

Sequestrar a fé das pessoas para promover um evangelho de ostentação é uma das coisas mais zoadas que se pode fazer.
Os falsos profetas só se preocupam com aqueles membros que normalmente são profissionais liberais, tipo advogado, contador, economista, médico ou coisa do tipo, que vão gerar para eles um bom dízimo, uma boa oferta. É com essas pessoas que eles estão preocupados. Se você não faz parte desse clã, você pode entrar, sair, ir para o inferno, ir para onde quiser, até Guaianases [risos], que não estão nem um pouco preocupados com a sua alma. É um evangelho pseudo inclusivo. Muito lamentável, muito triste. Particularmente, como sou muito ousada, tenho essa missão de falar.

Você chegou a trabalhar na antiga Telesp ao chegar aqui em São Paulo, e acabou demitida de lá também por preconceito. Hoje, vemos empresas abrindo vagas exclusivas para pessoas LGBTQIA+. Isso aponta para uma evolução?
Está mudando, bem pouco, mas está. É um trabalho de formiguinha. Mas não está a ponto de dizer que é o ideal, porque tem muita gente sofrendo por aí com esse preconceito, por não conseguir colocação no mercado de trabalho. Eu só consegui me recolocar a partir do momento em que assumi a profissão de cabeleireira, porque no mercado formal mesmo, não consegui, não consigo mais. Você não passa numa seleção, nunca, a partir do momento em que você chega e diz: “Olha, o meu nome social é Jacqueline Chanel.” A pessoa te olha assim… E a coisa vai acontecendo tão naturalmente na sua vida, que você não percebe que já virou uma mulher de tudo e as pessoas ainda estão te tratando assim.

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(Natalia Pilati/Fotografia)

Antes de se apresentar como Jacqueline Chanel, você era chamada de Vatusa Beckman. Por que rolou essa troca de nome?
Vatusa era em Belém. Quando cheguei em São Paulo era época do lançamento daquele filme Priscilla, a Rainha do Deserto e, ao ir trabalhar na Telesp, todo mundo me chamava de Priscilla. Só que, logo em seguida, conheci um rapaz e me casei com ele, fiz união estável, e ele não gostava desse nome. Foi ele quem me sugeriu “Jacqueline Chanel”, por causa da Jackie Kennedy Onassis e da Gabrielle Bonheur Chanel (aka Coco Chanel). Daí aceitei a sugestão, porque eu era doida por ele, maluca! [risos] Isso gerou tanto desentendimento depois…

Ah, é? Por que?
Porque ele me cobrava, como se o meu nome fosse uma marca: “Fui eu quem te deu o nome!” [risos] Teve uma época que tive salão na Av. Brigadeiro Luís Antônio, eu faturava bem e ele dizia: “Fui eu quem te fiz! Eu que te construí! Sou o dono da sua marca!” [risos] Mas foi um nome muito forte e que deu certo, graças a Deus. E esses dois nomes têm tudo a ver com cabelo, né, com a ostentação que o cabelo traz, com o mundo da moda, da beleza…

Pode crer. E você já trampou com cabelo e maquiagem até na Globo. Foi legal?
Pena que cortaram as minhas asas na Globo. Pelo fato de ser trans, me cortaram. Se não, eu já seria um dos grandes nomes da emissora como cabeleireira e maquiadora. Fui convidada para uma edição do Criança Esperança. Ao chegar, já causei, né. Só pelo fato de chegar como trans. Era impressionante, os artistas lá, em vez de eu ir até eles, era eles que vinham até mim, cumprimentar: “Nossa, meus parabéns! Que lindo, você, uma trans, aqui trabalhando!” Isso gerou um incômodo muito grande entre os demais profissionais de cabelo e maquiagem – a maioria era gay.


“Eu só consegui me recolocar quando assumi a profissão de cabeleireira, porque no mercado formal mesmo, não consegui, não consigo mais. Você nunca passa numa seleção a partir do momento em que chega e diz: ‘Olha, o meu nome social é Jacqueline Chanel'”

É interessante você compartilhar isso, assim como a história do pastor da igreja inclusiva excludente [risos], porque talvez exista um senso comum de achar que todas as pessoas LGBTQIA+ são incondicionalmente unidas.
Sim, o gay machão tem preconceito com o gay que é afeminado. Agora, você imagina em relação a trans, o preconceito é muito pior. Ainda mais quando é assim, que nem eu, loira, “pequena”, né! [risos] Você já chega, digamos, como um carro alegórico, calada! Calada você já está incomodando. Comigo sempre foi assim, porque tenho 1,80 de altura. E o pior de tudo é que, se eu for com a ideia de entrar bem discreta e não causar, não dá certo! Nunca que deu certo [risos]. Eu morro de vergonha, se você soubesse!

Vergonha? Como assim?
Esse destaque me incomoda, me deixa com vergonha. Não era exatamente isso que eu queria, mas o trabalho, o seu comportamento, vai levando você para esse lugar. E existe ainda a questão física, o seu corpo se destaca, então não tem como.

Como ficou o lance da Parada Trans esse ano?
Acredito que não vai ter, devido a essa pandemia. Mas estou conversando com o Renato Viterbo, que é o vice-presidente da Parada LGBT+, para ver se a gente faz a coisa virtual. Ou então a gente remarca para uma outra data. Ano passado fiz no dia 25 de janeiro, que foi o feriado do Aniversário de São Paulo, e este ano a ideia era repetir. Foram quatro edições como Caminhada da Paz, com a Renata Peron; ano passado, assumi e já mudei para Caminhada Trans, e neste ano, com o apoio da Parada LGBT+, vai ser a 6ª Parada Trans, para não perder o número de edições. Mas, na realidade, será a primeira “Parada Trans”.

Ano passado, você assumiu a parada de última hora e acabou levando para a avenida mais de cinco mil pessoas. Parabéns!
Foi um escândalo! E foi lá que recebi o convite para participar do documentário Sagradas. A Erika Hilton e eu estávamos juntas nesse evento. Estou feliz da vida em ter esse destaque, essa projeção, ao lado dela. Fico muito feliz por ela, pela conquista dela. Essa conquista representa muito para a nossa comunidade.

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(Natalia Pilati/Fotografia)

“Esse destaque me incomoda, me deixa com vergonha. Não era exatamente isso que eu queria, mas o trabalho, o seu comportamento, vai levando você para esse lugar”

O que você já pode revelar sobre o livro que vai sair contando a sua história?
É um livro de vivências de pessoas LGBTQIA+ com mais de 50 anos. São várias histórias, entre elas, a minha. Inclusive, vai ser lançado fora do Brasil também. O título vai ser Vivências de LGBTQIs 50+. Os entrevistadores disseram que a minha história é uma das mais emocionantes que eles já coletaram.

Quem são os parceires do Projeto Séforas e como as pessoas podem colaborar com as ações, doações etc.?
Tenho uma campanha, que continua rolando, por meio do site apoia.se/seforas. São essas doações que me trazem o recurso financeiro para que eu possa distribuir as marmitas. Além dos parceiros, como a própria Parada LGBT+, que criou uma outra parada, específica para ajudar as ONGs, os projetos voltados para LGBT+s em vulnerabilidade. O Projeto Séforas foi um dos beneficiados, então tenho muito o que agradecer. No Natal que nós fizemos, eles foram essenciais, o Renato me ajudou muito. Ele veio até aqui para a cozinha, para você ter uma ideia, me ajudar a preparar os alimentos. Ele também conseguiu uma doação da Riachuelo, que fiquei, assim, encantada. Muitas peças de roupas, todas novas. Nós levamos roupas novas para moradores de rua lá do Páteo do Colégio e da Sé, foram mais de mil marmitas nesse dia. Foi lindo, tivemos um Natal maravilhoso, fizemos uma comida diferenciada: arroz à grega, maionese, frango frito. Fechamos o ano com chave de ouro, literalmente. Esse site para mim é essencial, chegamos a ter uma retirada mensal de quase R$ 10 mil nos primeiros meses da pandemia. Mas depois deu uma baixa. Continuo lutando para retomarmos o que tínhamos antes como apoio para poder seguir com esse trabalho, que é humanitário e essencial. É solidariedade e amor puro pelas pessoas. Jesus alimentou mais de cinco mil pessoas, e aquela gente que o acompanhava era nada mais nada menos do que os moradores de rua de hoje. Mais do que necessário, é um trabalho sagrado.

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(Natalia Pilati/Fotografia)

Infelizmente, barriga vazia é só o primeiro dos problemas de quem está em situação de rua…
Sim, amado… É claro que não consigo resolver a vida de todo mundo com uma marmita, mas consigo aliviar a dor da fome, do frio, oferecendo um cobertor. Aliviar o sofrimento daquela pessoa, porque quando ela está há três dias sem comer e você chega com um marmitex, a vida dela muda de uma hora para a outra. Já dei marmita para pessoa que estava com dor de cabeça de tanta fome. Por aí você tira o sofrimento daquela vida. E quando você vê pessoas que são semelhantes a você, da sua comunidade, aí é muito pior…

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As imagens que você viu nessa reportagem foram feitas por Natalia Pilati. Confira mais de seu trabalho aqui.

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