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Elas vestem a camisa

No país do futebol, mulheres reafirmam a luta contra a lesbofobia e a paixão pelo esporte, longe dos estereótipos de gênero

por Heloisa Aun Atualizado em 12 mar 2021, 11h46 - Publicado em 9 mar 2021 02h24
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(Clube Lambada/Ilustração)

O futebol feminino é um tremendo terreno fértil para o lesbianismo”, declarou Gabriel Camargo, presidente do time colombiano Tolima. Tal afirmação foi feita em 2018, meses antes de entrar em vigor uma determinação estabelecendo que qualquer clube que dispute a Libertadores masculina precisa ter uma equipe feminina, de acordo com a Conmebol. Apesar de alvo de inúmeras críticas, a frase de Camargo traz uma perspectiva recorrente e reitera os estereótipos de gênero associados às mulheres que jogam futebol.

No Brasil, isso se dá de forma ainda pior. O machismo é amplamente disseminado por pessoas em cargos de poder, como o presidente Jair Bolsonaro. Recentemente, após a repercussão de uma questão do Enem 2020 que falava sobre a diferença salarial entre Marta e Neymar, ele disse que a pergunta é “ridícula” e ainda acrescentou que o “futebol feminino não é realidade” no país. Poucas semanas depois, um sócio e ex-conselheiro do Santos, Sergio Ramos, atacou a modalidade com mais declarações preconceituosas. “O futebol feminino é um lixo. Eu não assisto uma porcaria dessa de jeito nenhum”, pontuou.

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(Pétala Lopes / assistência Lucas Brandão/Fotografia)

Entender todas essas distinções passa, também, pela história. Durante quatro décadas, de 1941 a 1979, as mulheres foram proibidas de praticar futebol no território nacional. À época, muitas fizeram de tudo para continuar jogando bola, mas não houve qualquer desenvolvimento da modalidade, e isso vai além do esporte. Culturalmente, o país do futebol é conhecido – e reconhecido – pela seleção masculina e há um consequente investimento superior em atletas homens.

Até pouco tempo atrás, era praticamente impossível encontrar uma escolinha de futebol para crianças do gênero feminino. O cenário tem mudado aos poucos, com uma maior visibilidade das mulheres no país e no mundo, mas está longe de ser o ideal, principalmente em relação à desigualdade de salários.


Durante quatro décadas, de 1941 a 1979, as mulheres foram proibidas de praticar futebol no território nacional

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Ainda na infância, meninas que gostam do esporte, muitas vezes, vivenciam situações de preconceito, que independem de sua orientação sexual. As barreiras superadas por muitas jogadoras, que se destacaram nacional e internacionalmente, abriram portas para uma maior liberdade de ser quem cada uma é. Atletas da modalidade passaram a falar publicamente sobre seus relacionamentos com outras mulheres, porém, reforçando que não há qualquer relação entre jogar futebol e ser lésbica.

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(Pétala Lopes / assistência Lucas Brandão/Fotografia)

Elástica ouviu histórias de Amanda, Kimberly, Carolzinha, Katrina e Paty, cinco jogadoras de futebol, de diferentes categorias, para mostrar a importância do espaço conquistado por meio da batalha diária por mais valorização no esporte e contra a lesbofobia.

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Kimberly Damascena, 25 anos, lateral esquerda do Apache (SP)

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(Pétala Lopes / assistência Lucas Brandão/Fotografia)

Única menina do treino entre 10 “moleques”, Kimberly Damascena era chamada de “Maria macho” por algumas pessoas ao começar a jogar bola, aos sete anos de idade. O preconceito veio cedo, muito antes de entender mais sobre sua sexualidade, e até hoje está presente em situações do dia a dia, principalmente por ser jogadora de futebol e ter muitos amigos homens.

Nascida em Interlagos, zona sul de São Paulo, a jovem de 25 anos tentou levar seu talento para frente, em uma época ainda mais difícil. O sonho ficou um pouco de escanteio, mas a paixão pelo esporte não. Na mesma época, fez faculdade de administração e decidiu abrir uma doceria, pois nunca conseguiu se adaptar a trabalhar em empresas. “Tenho uma ansiedade muito elevada e isso me prejudicou.” Hoje, entre as horas de trabalho e descanso, ela usa seu tempo livre para jogar no futebol de várzea e sair com os amigos.

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(Pétala Lopes / assistência Lucas Brandão/Fotografia)

O amor pelo esporte nasceu ainda na infância. Logo cedo, Kimberly correu atrás de encontrar um espaço para ser jogadora de futebol profissional. Partiu em busca de peneiras, o que de fato não existia, somente a do Centro Olímpico. “Lá, tentei três vezes até conseguir e foi muito puxado”, diz. A jovem entrou no time e notou que não era aquilo que queria. “Algo não me fazia bem e fui perdendo o encanto”, lembra. Para ela, hoje é muito diferente, pois as meninas que atuam na modalidade estão sendo vistas com outros olhos. “Às vezes, me sinto frustrada, porque olho para o futebol agora e penso: ‘poxa, poderia estar lá’. Eu sei que tinha capacidade. Mas torço por elas e fico feliz.”

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Após desistir da carreira naquele momento, seu sentimento de tristeza a afastou do campo por cerca de um ano e meio. Voltou a praticar ao entrar na faculdade e retornou ao time perto da sua casa, o Acadêmicos Cidade Dutra. No início de 2019, uma amiga a convidou para jogar no Apache, onde está até hoje, como lateral esquerda. O time é um dos melhores de várzea da zona sul da capital paulista. “No Apache, as mulheres são mais velhas e já jogam há tempos juntas. Por isso, não há treinos, mas sim, jogos todo sábado e domingo.”

“No Apache, as mulheres são mais velhas e já jogam há tempos juntas. Por isso, não há treinos, mas sim, jogos todo sábado e domingo”

Kimberly Damascena

A desistência do futebol profissional caminhou lado a lado com o preconceito que sofria enquanto uma jovem que gostava de meninas. A lesbofobia por parte de pessoas de fora de seu ciclo nunca a impactou, porém, sua tia, que a criou, sempre disseminou esse tipo de discriminação. “Qualquer coisa que eu fizesse, ela ‘cortava’ o futebol, como quando eu ia mal na escola, por exemplo. Não me desenvolvi na modalidade também por causa disso. E até hoje ela fica de cara feia se eu sair para jogar bola. O que eu posso fazer?”, pergunta.

Apesar de ter se assumido lésbica aos 21 anos de idade, não chegou a falar abertamente para a família sobre o assunto, uma vez que acredita que os parentes próximos não irão aceitar. Seu último relacionamento foi com uma jogadora, que praticamente morava dentro de sua casa, mas a tia fingia que não sabia. “Eu relevo qualquer coisa que ela fala e não toco mais no assunto.” O acolhimento que precisava neste período veio dentro de campo, ao lado das amigas e colegas. “O futebol não influencia você ser ou não quem você é”, completa.

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(Pétala Lopes / assistência Lucas Brandão/Fotografia)

Ser uma mulher que ama e joga futebol, de acordo com Kimberly, tem sido menos difícil nos últimos anos. A emoção de ver tantas meninas realizando seus sonhos é motivo de orgulho para ela, no entanto, não esquece que é necessário investir muito mais nas mulheres, como na base de treinamento. “Meninas, não importa a dificuldade, não desistam. Vamos vencer juntas”, afirma.

Corinthiana de camisa e torcida, ela revela que, se pudesse, jogaria no Santos, pois é fã da atacante Cris. A paixão pelo futebol também lhe rendeu alguns dos momentos mais marcantes de sua vida. Um deles foi a final do Campeonato Brasileiro, em que o Corinthians foi campeão do feminino após vencer o São Paulo. ”Jogo lotado. Deu um frio na barriga ao ver aquilo. Muitas mulheres e muitos homens na arquibancada, torcendo e vibrando por elas”, conta, emocionada.

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Amanda Costa, 23 anos, zagueira do Botafogo (RJ)

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(Amanda Costa/Divulgação)

O futebol está no sangue da zagueira Amanda Costa. Nascida e criada em São Paulo, a jogadora de 23 anos tinha apenas 7 quando pediu à mãe para fazer aula com os meninos em uma escolinha. Foi paixão à primeira vista, muito provavelmente influenciada pelo pai, atleta da modalidade. Há dois anos, ela atua na categoria profissional do Botafogo, no Rio de Janeiro. “Já faz 15 anos que jogo e espero nunca parar”, ressalta. Ela também cursou um ano e meio da faculdade de fisioterapia, a qual teve que trancar por motivos pessoais.

A trajetória de Amanda teve uma série de desafios devido ao preconceito contra o futebol feminino. Após treinar até os sete anos em Franca, interior do estado, ela se mudou para a capital e logo entrou na difícil tarefa, junto de sua mãe, de encontrar um lugar em que meninas e meninos treinassem juntos. Mais tarde, teve a oportunidade de ir para o Centro Olímpico, que hoje é a maior base nacional e revelou diversas jogadoras para o país e o mundo. “Costumo falar que cada time que passei me ensinou algo e me fez chegar até onde estou hoje, em um grande clube. Sou grata a eles”, ressalta.

No começo, a atleta recebeu apoio por parte da mãe, pois ainda havia inúmeras barreiras em relação a mulheres no futebol. “É aquela história: você vai jogar bola, ‘virar homossexual’, usar droga e beber. Felizmente, eu mostrei a eles que isso não tinha nada a ver, pois era de fato uma paixão pelo esporte”, explica. Hoje, todos da família a aceitam bem, inclusive pedem camisas a ela, veem os jogos e mandam mensagens de apoio. “Ninguém botou fé que eu chegaria aonde estou. Para todos, eu seria apenas mais uma.”

“É aquela história: você vai jogar bola, ‘virar homossexual’, usar droga e beber. Felizmente, eu mostrei a eles que isso não tinha nada a ver, pois era de fato uma paixão pelo esporte”

Amanda Costa
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Amanda percebeu os olhares discriminatórios dos torcedores para as atletas. “Se alguma de nós raspava o cabelo, diziam que era lésbica. E isso não influencia em nada na qualidade da pessoa no esporte. Não tem nada a ver jogar futebol e ser lésbica, pois você já nasce assim”, pontua. Enfrentar o campo, para ela, não foi a pior parte. Quando se entendeu enquanto uma mulher lésbica, teve muito medo de sua família não lidar bem e a rejeitar. Felizmente, depois de algum tempo, percebeu que todos estariam ao seu lado.

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(Amanda Costa/Divulgação)

O primeiro passo para seu processo de auto aceitação foi procurar ajuda de uma psicóloga. “Eu me olhava no espelho e falava: não adianta fingir para ninguém que sou algo que não sou”, diz. No ano passado, ao conversar sobre o assunto com seus pais, que eram seu maior medo, ambos foram tranquilos e disseram que estavam esperando por essa conversa. “Hoje, minha família tem suas crenças, as quais concordo plenamente. Por isso, nada me impede de acreditar em Deus e seguir sua palavra.”

Para Amanda, atualmente, as pessoas começaram a ter uma visão diferente, tanto de mulheres lésbicas, como do futebol. Porém, Amanda escutou comentários desrespeitosos da torcida, como chamando ela e outras companheiras de equipe de “Maria homem” ou “sapatão”. “Muitas amigas minhas pararam de jogar por conta disso”, afirma. “O que nos motiva é que cada vez mais isso tem diminuído”, rebate.

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A zagueira do Botafogo acredita que há um grande tabu urgente a ser rompido: que o futebol feminino não é legal de acompanhar e assistir. Só dessa forma o machismo e a LGBTfobia vão passar a diminuir em maior grau. “Cada dia vamos colocando um tijolinho para que a gente chegue a uma valorização aceitável”, acrescenta. E ela diz isso com base em sua experiência e nas conquistas em campo. Foi apenas aos 18 anos que a paulista começou a ganhar um salário para, hoje, conseguir um contrato profissional e se sustentar.

As dificuldades no meio desse caminho a fizeram renunciar de muitas coisas. “Ainda bem que isso está mudando e hoje o futebol feminino é visto com outros olhos – é o que nos faz continuar”, afirma. Aliado a isso, Amanda sempre admirou e teve como exemplo jogadoras como Cristiane, Formiga e Erika. “Me espelho bastante nelas, em tudo o que passaram sem ter nem metade das coisas e informações que temos agora.”

Os sonhos da atleta giram em torno do esporte, mas incluem outras possibilidades dentro desse campo. Após terminar a faculdade, ela deseja seguir no esporte independente de continuar jogando ou não e, quem sabe, se tornar uma preparadora física, fisioterapeuta ou técnica. A ideia de alcançar a Seleção Brasileira e ter uma experiência fora do país também estão em sua lista para o futuro. Agora, quer subir com o Botafogo para a Série A1 e fazer história. “Todo esse processo se baseia muito em você como atleta. A oportunidade não bate duas vezes na mesma porta, então é você se manter bem e preparada para o que vier”, completa.

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Patrícia da Silva, 27 anos, lateral direita do Apache (SP)

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(Pétala Lopes / assistência Lucas Brandão/Fotografia)

Quando pequena, Patrícia Santos da Silva era chamada para brincar de boneca com as amigas, mas preferia permanecer com os meninos jogando futebol. A relação lado a lado com o esporte induziu seu interesse pelo movimento corporal e a fez se formar em Educação Física. Atualmente aos 27 anos, a personal trainer de Parelheiros, extremo sul de São Paulo, tinha o desejo de se tornar profissional e tentou atuar em alguns times, no entanto, na adolescência teve que parar para trabalhar, ajudar em casa e ser independente.

Paty trabalhava de domingo a domingo e o sonho ficou cada vez mais distante porque já eram poucas as oportunidades que surgiam. As dificuldades, contudo, vieram bem mais cedo. Ainda criança, havia um time de futebol masculino na região em que morava, então eu pedia à mãe para treinar com os meninos. “Naquela época, era muito difícil entrar nas equipes, então, pedi a minha mãe para falar com os responsáveis pelos treinos e solicitar que me autorizassem a treinar. Só quem se destacava muito conseguia alguma visibilidade no território”, diz a atleta.

Após algum tempo, a jogadora conseguiu entrar nesse time e tornou-se a primeira menina do bairro entre os meninos. Aos poucos, apareceram outras interessadas e o treinador juntou quase duas equipes de meninas. Sempre quando tinha campeonato masculino, as garotas eram colocadas para fazer a abertura e dois times competiam entre si. Com o tempo, Patty foi para o Centro Olímpico, conheceu mais atletas como ela e abriu sua mente.

Seu motivo para decidir parar de jogar futebol era algo bem importante em sua vida: dedicar-se aos estudos e ao trabalho. Como era de se esperar, a relação com o esporte nunca teve um fim. Quando o Apache foi criado, ela foi convidada para voltar a jogar e, desde então, só atua por ele. Como todas as integrantes trabalham, o jogo oficial é o momento de ajustar o time e modificar a tática em campo. “Nós jogamos os campeonatos que surgem, como os de bairro, e disputamos a Taça das Favelas”, explica.

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(Pétala Lopes / assistência Lucas Brandão/Fotografia)

A jogadora do Apache reflete que, se tivesse nascido nos tempos atuais, não deixaria de lado o sonho de se estabelecer no futebol profissional. “Na minha época era ainda mais difícil. Hoje, me sinto realizada porque, mesmo que não trabalhe diretamente com futebol, eu auxilio o movimento, então posso utilizar muitas técnicas do esporte nas minhas aulas”, ressalta. Patty pontua os desafios do futebol feminino no Brasil: “É preciso igualdade salarial e igualdade no respeito, acima de tudo. Agora está sendo reconhecido, mas não valorizado”.

A família e os meninos na rua nunca tiveram qualquer preconceito com Patty por ela gostar de futebol. Porém, quando o time se deslocava para outras regiões, ocorriam comentários ofensivos por ela ser a única menina da equipe.

“É preciso igualdade salarial e igualdade no respeito, acima de tudo. Agora está sendo reconhecido, mas não valorizado”

Patrícia da Silva
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O mesmo aconteceu quando começou a ter desejos por mulheres, por volta dos 15 anos. Sua mãe, pai e irmão aceitaram bem, apesar do impacto inicial, mas os olhares maldosos estiveram presentes dentro e fora de campo por parte de outras pessoas. “A sociedade tem essa visão de que mulher jogando bola é lésbica. O fato de eu jogar futebol não me influenciou em nada, pois já sentia isso dentro de mim há muito tempo”, relata. “Isso é um tabu e faz com que muitas evitem falar sobre o tema para preservar seu emocional.”

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(Pétala Lopes / assistência Lucas Brandão/Fotografia)

A falta de reconhecimento ao futebol feminino também a fez ter poucas referências na infância. Por isso, tinha Ronaldinho Gaúcho como seu ídolo pela ousadia e jeito de jogar, como ela define. Hoje, acompanha, além das seleções masculina e feminina, seu time do coração, o Corinthians. De todos os momentos que vivenciou dentro e fora de campo, a paulistana conta que o mais marcante foi ao ser convidada para participar do Apache. “Naquele momento, eu tinha acabado de sofrer um acidente de moto muito grave, no qual quebrei o quadril, e tinha receio de jogar futebol. A partir de então, tive mais confiança em mim mesma e nas pessoas. Me ajudou demais na recuperação física e psicológica”, finaliza.

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Katrina Amorim, 37 anos, meia do Assermurb (AC)

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(Katrina Amorim/Divulgação)

Desde pequena, Katrina Amorim, de 37 anos, sentia algo diferente por meninas, só que tinha medo de falar a respeito por causa da família. Foi no futebol que ela se sentiu mais à vontade e foi acolhida por pessoas próximas, sem qualquer preconceito. Aos 21 anos, quando passou a se sustentar, tomou coragem e falou a todos: “Eu sou lésbica”. “Não foi fácil para mim, mas meu pai e minha irmã sempre foram muito abertos”, enfatiza.

O futebol teve início em sua vida ainda na infância, incentivada pelo pai e o irmão. A lesbofobia caminhou lado a lado desde o momento em que entrou em campo, até mesmo por parte dos coleguinhas na rua. “No primeiro ano em que treinei com eles, um dia estávamos todos no vestiário e uns rapazes jogaram lama dentro do local. Eu não cheguei a me sujar, mas as meninas ficaram cheias de barro”, lembra.

“Vivo uma união estável com a goleira do nosso time. Estamos juntas há oito anos. Antes dela, me envolvia com quem não curtia futebol e era uma dificuldade”

Katrina Amorim

Segundo Katrina, ao mesmo tempo em que muitas meninas procuram o futebol em busca de apoio, algumas se afastam porque os pais não querem que elas se aproximem de outras que “seriam lésbicas”. Embora tenha passado por momentos difíceis, ela persistiu com seu sonho e, aos 14 anos, começou a jogar. Já atuou em uma equipe de Manaus (AM), em outra de Porto Velho (RO), e depois retornou a sua cidade, Rio Branco, no Acre.

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A acreana joga como meio-campo do Assermurb, time mais antigo da cidade quando se trata de futebol feminino, mas a modalidade virou lazer em sua vida devido à segurança financeira. “A associação visa o esporte e o lazer e, hoje, trabalha com futebol adulto e sub-20. Disputamos campeonatos de futebol e futsal profissional”, explica. Durante sua trajetória, ela se formou em Educação Física e também cursou recentemente Direito. Por isso, trabalha no departamento de esportes do município com atividades relacionadas à área jurídica.

Em certo momento, a jogadora chegou a receber remuneração em um time do Amazonas. Decidiu aceitar a oportunidade para ver se era aquilo que queria, porém, aos 20 anos, já tinha deixado de ver o futebol como futuro profissional. Esta experiência a fez optar por seguir em outra área de atuação, que é diretamente relacionada ao esporte pelo qual tem tanto apreço. “Acho que contribuo mais com minha função atual, mas incentivo muito as meninas a continuarem. Se eu vivesse no cenário de agora, talvez preferisse jogar futebol. Há 10 anos, estava tudo engatinhando”, reflete.

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(Katrina Amorim/Divulgação)

Por muitos anos, Katrina presenciou algumas colegas de campo escondendo sua orientação sexual para a família, apesar do apoio entre o time ser forte. O futebol também a uniu com sua esposa. “Vivo uma união estável com a goleira do nosso time. Estamos juntas há oito anos. Antes dela, me envolvia com quem não curtia futebol e era uma dificuldade”, relata.

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Quando jogava em Manaus, Katrina recorda que não sofreu lesbofobia, no entanto, passou por situações de assédio com um dos dirigentes da equipe. Ele a buscou no aeroporto no dia de uma final e rodou a cidade inteira querendo pagar um sorvete a ela e a chamando para sair. “Relatei para o dono do clube e ele respondeu que o homem era um dos patrocinadores do time”, reitera. “O assédio sexual é muito comum. Aqui mesmo na nossa equipe tivemos vários treinadores assediadores, e os derrubamos em seguida. E fizemos uma parceria com a professora Rose, que foi injustiçada.”


“O assédio sexual é muito comum. Aqui mesmo na nossa equipe tivemos vários treinadores assediadores, e os derrubamos em seguida. E fizemos uma parceria com a professora Rose, que foi injustiçada”

A atleta viveu muitos momentos marcantes em sua história no futebol, como quando teve a oportunidade de participar dos jogos universitários de sua faculdade. Para ela, uma pessoa tem um espaço especial em sua memória: o treinador José Ribamar Pinheiro de Almeida, que faleceu de câncer em dezembro de 2016. “Ele foi o maior incentivador do futebol feminino. Antes de ele entrar, ninguém jogava nem competição de bairro, pois o machismo era muito grande. Como ele era árbitro e advogado, teve grande influência para mudar esse cenário e desenvolver as equipes. Além disso, brigava para que tivessem jogos nos mesmos horários dos homens e competições entre mulheres”, pontua.

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(Katrina Amorim/Divulgação)

O maior legado de Katrina nesta última década foi levantar a bandeira do futebol feminino. Desde que começou a jogar, nunca se escondeu. “Eu conheço muita gente e muita gente me conhece pelo futebol. Hoje, eu trabalho em um local que faz competições e conseguimos igualar os pagamentos para homens e mulheres”, afirma. A acreana ressalta que o esporte no estado está muito defasado em consequência da distância e da invisibilidade, e pede: “Gostaria que houvesse mais respeito com as atletas, principalmente pela federação”.

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Carolina Sampaio, 19 anos, zagueira do Ituano (SP)

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(Pétala Lopes / assistência Lucas Brandão/Fotografia)

Zagueira, lateral e volante. Carolina Santos Sampaio, mais conhecida como Carolzinha, já demonstrava diferentes habilidades em campo desde a infância, quando era a única menina treinando ao lado dos meninos. Nascida em São Paulo, a jogadora de 19 anos está em uma fase de transição de clubes, pois até ano passado atuava com a camisa 3 do Realidade Jovem, de São José do Rio Preto, e, em fevereiro, iniciou sua carreira no Ituano. Seu sonho? Entrar na Seleção Brasileira, no sub-20 e no time principal. “Se Deus quiser chegarei lá. Mas preciso trabalhar muito, tanto o psicológico, como a preparação física e a parte técnica”, reitera.

Aos 12 anos de idade, influenciada pelo irmão, Carolzinha disse para o pai que queria ir para a escolinha de futebol. Foi muito difícil encontrar um local que aceitasse meninas, mas, felizmente, conheceram o Acadêmicos Cidade Dutra. Embora fosse a única criança do gênero feminino, a atleta foi respeitada e não sofreu qualquer tipo de preconceito por parte dos colegas.

Algum tempo depois, em 2016, o Acadêmicos criou um time feminino e, pela primeira vez, Carolina pode treinar lado a lado com meninas. Em 2017 e 2018, a jovem atuou na base do Audax, de Osasco, pelo qual foi vice-campeã paulista do sub-17. Neste clube, ela passou um de seus momentos mais marcantes no futebol. Seu pai, que tanto a apoiava, faleceu um ano antes do título, mas ela conseguiu pegar firme, chegar na final e dedicar a conquista a ele. “Os professores e as alunas não me deixaram desistir.”

Em 2019, a paulista jogou no primeiro time de base do Corinthians e, em seguida, também no primeiro da Ponte Preta, atuando no brasileiro sub-18. Longe de ser fácil, sua trajetória tornou-se possível graças ao apoio da família, especialmente de sua mãe, que sempre a incentivou a seguir.

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(Pétala Lopes / assistência Lucas Brandão/Fotografia)

No mesmo ano, ela deu outro passo importante e, mais uma vez, todos permaneceram próximos. Ao se assumir lésbica, Carolzinha teve muito medo, no entanto, a rede de apoio com as amigas a fortaleceu. “Primeiro, contei para minha mãe. Por incrível que pareça, ela já sabia. Aí revelei para o restante da família e me aceitaram bem. Hoje tenho total liberdade para falar sobre esse tema com todos”, relata.

Embora não tenha problema em abordar o assunto, a atleta prefere ser discreta nas redes sociais e focar em suas conquistas no futebol. Para isso, a rotina não é nada fácil. Todos os dias, acorda às 6h para correr. Às 7h30, quando retorna, faz toda a parte de fortalecimento com a borrachinha. Por volta das 10h, se dirige até o campo para trabalhar com bola e o físico de modo geral. Pela tarde, consegue tirar um tempo para descansar.

“Primeiro, contei para minha mãe. Por incrível que pareça, ela já sabia. Aí revelei para o restante da família e me aceitaram bem. Hoje tenho total liberdade para falar sobre esse tema com todos”

Carolina Sampaio

Nem sempre Carol conseguiu encontrar um tempo para recarregar as energias em meio à dedicação ao futebol. Em 2017, estava no segundo ano do ensino médio, portanto, estudava à noite e treinava toda tarde. Saía de Osasco e se encaminhava para a zona sul de São Paulo, em um trajeto longo, chegando atrasada na escola. “Pegava a segunda, terceira e até a quarta aula, mas não perdia nenhum dia. E consegui terminar os estudos! Muitos professores me auxiliavam para dar conta de tudo.” Naquele momento, pensou em desistir, mas seguiu firme e hoje tem seu reconhecimento mais do que nunca.

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(Pétala Lopes / assistência Lucas Brandão/Fotografia)

Assim como vê em Formiga seu grande ídolo, Carolzinha faz de tudo para engajar outras meninas a não desistirem da carreira. Ela explica que, atualmente, a visibilidade tem crescido cada dia mais e todos os clubes têm seus times de base. “Também tem o Centro Olímpico que trabalha essa categoria”, explica.

Mesmo assim, falta muito nesse processo. Falta investimento, visibilidade e valor. “Lá fora, muitas vezes, o futebol feminino chega a ser mais valorizado do que o masculino. Futebol feminino tem sim valor no nosso país”, acrescenta ela, que finaliza com um recado às milhares de jovens que amam esse esporte: “Vejo muitas meninas que jogam para caramba, porém apenas por diversão. Eu aconselharia que elas foquem em seus objetivos e peguem firme, caso elas queiram seguir no profissional”.

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As imagens que você viu nessa reportagem foram feitas por Pétala Lopes. Confira mais de seu trabalho aqui.

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