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A morte de Marina Harkot e o machismo das cidades

Além de escancarar a falta de segurança para ciclistas, caso levanta o debate sobre os ideais de masculinidade que alimentam a violência no trânsito

por Carol Ito Atualizado em 19 mar 2021, 10h59 - Publicado em 17 mar 2021 00h05
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(Clube Lambada/Ilustração)

m novembro de 2020, a morte da cicloativista e pesquisadora Marina Harkot, de 28 anos, mobilizou manifestações em diversas capitais brasileiras. Ela pedalava para voltar da casa de uma amiga, no bairro do Sumaré, zona oeste de São Paulo, quando foi atropelada por um carro. O motorista, que não prestou socorro, responde por homicídio doloso em liberdade. A morte da jovem, conhecida por seus estudos sobre mobilidade feminina, levanta o debate sobre o machismo estrutural que afeta a vivência de mulheres nos grandes centros urbanos.

“Ela estudava as condições que mulheres enfrentam para sair à noite na rua, conhecia as rotas, tinha consciência de seu caminho, literalmente falando. Ela estava fora da ciclofaixa, como algumas pessoas criticaram, mas o lugar do ciclista é na rua, a gente tem que aprender a compartilhar esse espaço”, diz Paula Santoro, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, que era orientadora de doutorado de Marina. “A morte dela foi muito simbólica, uma tragédia sem proporções. Todo mundo que é envolvido com bicicleta no Recife ficou devastado”, conta a cicloativista pernambucana JuDolores. “Essas mortes mostram o quanto a gente precisa lutar para uma lógica diferente em relação ao trânsito, para que as pessoas tenham a mínima consciência de que o compartilhamento é necessário”, acrescenta. 

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(Thais Viyuela/Fotografia)

Para Paula, a jovem foi vítima de um modelo em que o carro e a masculinidade associada a ele são protagonistas: “O atropelamento não foi acidente, porque existe uma ideia de que velocidade é uma coisa que os homens devem performar, enquanto motoristas de carro. Isso é parte da sociedade, é uma característica subjetiva que precisa ser desconstruída”, explica Paula. “Quando baixou a velocidade das marginais em São Paulo, houve diminuição do número de mortos. Quem mais morre no trânsito são homens jovens, então, essa ideia de masculinidade está matando eles mesmos”, comenta, em referência à retomada da velocidade mais alta, em 2017. 

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 “Quando baixou a velocidade das marginais em São Paulo, houve diminuição do número de mortos. Quem mais morre no trânsito são homens jovens, então, essa ideia de masculinidade está matando eles mesmos”

Paula Santoro
Paula Santoro, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi professora do doutorado de Marina Harkot
Paula Santoro, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi professora do doutorado de Marina Harkot (Vanessa Ferrari/Divulgação)

“Não é o carro que mata, mas a escolha do motorista de dirigir com violência. Existe a ideia de que estar dentro de um carro é estar protegido, de que seu tempo é mais importante do que o dos outros. É uma mentalidade individualista e hierárquica: ‘sou maior, sou mais poderoso’”, comenta JuDolores. “Acho que a gente tá vivendo um processo de construção de novas ideias de masculinidades associadas a modos ativos [não-motorizados], ao homem assumindo tarefas do cuidado, isso é muito importante”, reflete Paula. 

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(Thais Viyuela/Fotografia)

Mulheres e o espaço público

Se o homem é ensinado a ter uma postura individualista e até violenta no trânsito, é comum que as mulheres sejam desencorajadas a frequentar o espaço público desde a infância. “Desde muito cedo, nós, mulheres, recebemos muitos ‘nãos’: você não vai para a rua sozinha porque é perigoso, porque ainda não tem idade, porque pode sofrer violência”, observa Jô Pereira, diretora geral da Ciclocidade (Associação dos Ciclistas Urbanos de São Paulo) e fundadora do Pedal na Quebrada, projeto que ensina mulheres periféricas a andarem de bike, em São Paulo. “Para o gênero feminino, oferecem brinquedos estáticos, que ficam nos mesmos lugares. Para os meninos, oferecem brinquedos dinâmicos, que permitem ocupar as ruas, como andar de bicicleta, soltar pipa. No caso das meninas negras, é comum não aprenderem a pedalar porque já são responsabilizadas pela casa e pelo cuidado dos irmãos desde muito cedo.”

“Não é o carro que mata, mas a escolha do motorista de dirigir com violência. Existe a ideia de que estar dentro de um carro é estar protegido, de que seu tempo é mais importante do que o dos outros. É uma mentalidade individualista e hierárquica”

JuDolores
A cicloativista pernambucana JuDolores fala sobre a mobilidade sob a ótica da educação dada às crianças homens e mulheres
A cicloativista pernambucana JuDolores fala sobre a mobilidade sob a ótica da educação dada às crianças homens e mulheres (Ju Dolores/Arquivo)

“Vivemos o medo de formas diferentes. Pesquisas apontam que mulheres têm, entre outras preocupações, medo da violência sexual e, homens, medo da perda patrimonial; pessoas LGBTQs têm medo da violência física. Estamos num momento de perguntar: o que podemos fazer para mudar nossa forma de estar na cidade?”, questiona Paula, que, para além da necessidade de melhorar a infraestrutura oferecida para pessoas que andam de bicicleta ou a pé, é necessário estimular a ocupação das ruas e a educação para o compartilhamento: “Se tiver muita gente de bicicleta, os carros vão ter que recuar, vão ter que andar mais devagar. Ao invés de manter nosso comportamento moldado pelas relações morais e de segurança, é ocupar, ir pra rua”.

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JuDolores viu sua vida transformada depois que passou a usar a bicicleta como meio de transporte principal e hoje levanta  pautas feministas dentro do cicloativismo. “Tenho que concordar com a Susan Anthony [ativista dos direitos das mulheres no século 19] que andar de bicicleta fez mais pela emancipação da mulher do que qualquer outra coisa. É um instrumento potente para a autonomia feminina”, diz. 

“Para o gênero feminino, oferecem brinquedos estáticos, que ficam nos mesmos lugares. Para os meninos, oferecem brinquedos dinâmicos, que permitem ocupar as ruas, como andar de bicicleta, soltar pipa”

Jô Pereira
Jô Pereira, diretora geral da Ciclocidade (Associação dos Ciclistas Urbanos de São Paulo) e fundadora do Pedal na Quebrada
Jô Pereira, diretora geral da Ciclocidade (Associação dos Ciclistas Urbanos de São Paulo) e fundadora do Pedal na Quebrada (Giuliana Pompeu – Reprodução/Instagram @pedalnaquebrada/Reprodução)
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A

seguir, montamos uma lista de ideias para que uma mobilidade seja mais inclusiva e acolhedora não só para as ciclistas, mas para todas as pessoas que circulam pela cidade:  

Acalmamento do trânsito

As velocidades que a gente têm vivenciado em cidades como São Paulo, por exemplo, não são compatíveis com a chamada ‘visão zero’, em que nenhuma morte no trânsito é aceitável. Sem o acalmamento do trânsito, a insegurança de circular pela rua se mantém.”

[Jô Pereira, diretora geral da Ciclocidade]

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Menos carros e mais modos ativos

“Existe uma pesquisa do [engenheiro e sociólogo] Eduardo Alcântara Vasconcellos que mostra que, na hora do rush, só 15% da frota de carros está nas ruas. Ou seja, 85% está guardado, estacionado na rua ou dentro das casas, em espaços privados. Essa construção de priorizar o carro é um absurdo.”

[Paula Santoro, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP]

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“A gente sabe que não vão tirar os carros de circulação e não é isso que estamos propondo. A proposta é que existam espaços proporcionais para os diferentes modais. Ampliar os espaços para os modos ativos também é uma forma de melhorar a saúde física, mental e social das pessoas.”

[Jô Pereira, diretora geral da Ciclocidade]

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Melhorar a infraestrutura cicloviária

“Nas periferias paulistanas, por exemplo, onde as pessoas mais andam de bicicleta, essas infraestruturas não estão completas. Essa questão é urgente. Outro ponto é que a gente tenha dentro dessa infraestrutura os bicicletários, pensando nas pessoas que moram muito longe do local onde trabalham e não conseguem fazer todo o trajeto de bicicleta.”

[Jô Pereira, diretora geral da Ciclocidade]

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Transporte público mais acessível

“A ampliação do transporte público corrobora muito para uma cidade mais humana. Quem utiliza ônibus sabe o quanto os corredores fazem ganhar tempo na vida.”

[Jô Pereira, diretora geral da Ciclocidade]

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“Os nossos modos coletivos de transporte são muito caros. Para mim, uma pauta de gênero é a redução da tarifa, com aumento de subsídios ao invés de cortes, para que possamos usar mais o transporte público coletivo e ocupar mais a cidade.”

[Paula Santoro, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP]

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Educação para o compartilhamento 

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Eu acredito muito na educação infantil, das escolas ensinarem a andar de bicicleta, por exemplo. Se os familiares não ensinam, muitas vezes, porque não sabem, a escola poderia ter esse papel. Com isso, poderiam ensinar as crianças a compartilharem o espaço e as meninas a não se sentirem ameaçadas na cidade.”

[Paula Santoro, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP]

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(Thais Viyuela/Fotografia)

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As fotos que ilustram essa matéria foram tiradas por Thais Viyuela, ciclista e amiga de Marina Harkot. Reproduzimos na íntegra seu depoimento emocionado:

“As imagens foram feitas sete dias depois da morte de Marina, na avenida Paulo VI, onde foi vítima. Num gesto bonito e silencioso de despedida, amigos e conhecidos colaram um lambe-lambe com a foto da ciclista junto à mensagens de ativismo e luta. Naquele dia, foram plantadas ainda algumas árvores frutíferas no canteiro central, já que Marina andava sempre muito atenta às frutas da estação nas calçadas da cidade – sua preferida: a amoreira. Ali, de alguma maneira, nasceu mais vida depois da perda de Marina. Um jeito de retribuir à cidade mais amor do que ela nos tira.”

Confira mais de seu trabalho aqui.

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