m novembro de 2020, a morte da cicloativista e pesquisadora Marina Harkot, de 28 anos, mobilizou manifestações em diversas capitais brasileiras. Ela pedalava para voltar da casa de uma amiga, no bairro do Sumaré, zona oeste de São Paulo, quando foi atropelada por um carro. O motorista, que não prestou socorro, responde por homicídio doloso em liberdade. A morte da jovem, conhecida por seus estudos sobre mobilidade feminina, levanta o debate sobre o machismo estrutural que afeta a vivência de mulheres nos grandes centros urbanos.
“Ela estudava as condições que mulheres enfrentam para sair à noite na rua, conhecia as rotas, tinha consciência de seu caminho, literalmente falando. Ela estava fora da ciclofaixa, como algumas pessoas criticaram, mas o lugar do ciclista é na rua, a gente tem que aprender a compartilhar esse espaço”, diz Paula Santoro, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, que era orientadora de doutorado de Marina. “A morte dela foi muito simbólica, uma tragédia sem proporções. Todo mundo que é envolvido com bicicleta no Recife ficou devastado”, conta a cicloativista pernambucana JuDolores. “Essas mortes mostram o quanto a gente precisa lutar para uma lógica diferente em relação ao trânsito, para que as pessoas tenham a mínima consciência de que o compartilhamento é necessário”, acrescenta.
Para Paula, a jovem foi vítima de um modelo em que o carro e a masculinidade associada a ele são protagonistas: “O atropelamento não foi acidente, porque existe uma ideia de que velocidade é uma coisa que os homens devem performar, enquanto motoristas de carro. Isso é parte da sociedade, é uma característica subjetiva que precisa ser desconstruída”, explica Paula. “Quando baixou a velocidade das marginais em São Paulo, houve diminuição do número de mortos. Quem mais morre no trânsito são homens jovens, então, essa ideia de masculinidade está matando eles mesmos”, comenta, em referência à retomada da velocidade mais alta, em 2017.
“Quando baixou a velocidade das marginais em São Paulo, houve diminuição do número de mortos. Quem mais morre no trânsito são homens jovens, então, essa ideia de masculinidade está matando eles mesmos”
Paula Santoro
“Não é o carro que mata, mas a escolha do motorista de dirigir com violência. Existe a ideia de que estar dentro de um carro é estar protegido, de que seu tempo é mais importante do que o dos outros. É uma mentalidade individualista e hierárquica: ‘sou maior, sou mais poderoso’”, comenta JuDolores. “Acho que a gente tá vivendo um processo de construção de novas ideias de masculinidades associadas a modos ativos [não-motorizados], ao homem assumindo tarefas do cuidado, isso é muito importante”, reflete Paula.