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Marx na luta por games mais divertidos

Pesquisador inglês Jamie Woodcock defende mais poder aos trabalhadores para barrar práticas predatórias da indústria do videogame

por João Varella 18 mar 2021 01h12
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(ASCii/Ilustração)

m marxista liga um videogame. Pensa nas relações de trabalho e, a partir disso, elabora soluções para desenvolver jogos mais divertidos. Parece o começo de uma cena do Monty Phyton, mas é isso o que faz o sociólogo inglês Jamie Woodcock. “A partir dos games, é possível fazer profundas reflexões sobre o capitalismo contemporâneo”, disse ele em entrevista por videoconferência à Elástica. “A esquerda deveria ter algo a dizer sobre isso”.

É um tema sensível para um segmento que conta com trabalhadores em jornadas intensas de trabalho, em muitos casos sem remuneração, sem sindicato e proibidos por contrato de falar sobre o assunto. Professor com pós-doutorado em sociologia, o trabalho de Woodcock agora pode ser apreciado no Brasil por meio do recém-lançado livro Marx no fliperama: Videogames e luta de classes (Autonomia Literária).

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(Autonomia Literária/Divulgação)

O livro aproveita a participação de Karl Marx no jogo Assassin’s Creed Syndicate, cujo enredo acontece durante a Revolução Industrial, para usar como alegoria do impacto cultural e político dos videogames. Levanta debates sobre a produção dos jogos e, claro, aplica a teoria do filósofo alemão. Ironicamente, o segmento do videogame é comumente apelidado de “indústria”, embora tenha diferenças significativas das fábricas da época do autor de O Capital e Manifesto do Partido Comunista. Apesar do tom crítico, Woodcock vê com certo otimismo o videogame, principalmente ao retratar o trabalho dos estúdios independentes.

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(Jamie Woodcock/Divulgação)

Questões como o playbour (a mistura de diversão e trabalho), sindicalização e razões para os marxistas se interessarem por videogames são alguns dos pontos que ele discute na entrevista a seguir.

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Quando começou sua relação com videogame?
Comecei a jogar videogame antes de ser marxista, quando era criança. Jogava títulos como Lemmings [lançado em 1991], que eram dados a meu pai por um colega de trabalho. Nesse período, os videogames eram menos acessíveis, mas eu tinha acesso porque era uma ferramenta de trabalho do meu pai, que é engenheiro de softwares. Era necessário escrever comandos específicos para iniciar os jogos. Hoje, você tem um monte de jogos disponíveis na ponta dos dedos por meio do telefone.

Como enxergar os jogos depois que eles se transformaram em cultura de massa?
Hoje, há muita gente que joga títulos como Candy Crush e não considera ser um gamer. Videogames importam. A esquerda deveria ter algo a dizer sobre isso. Parte da esquerda vê videogames como um produto de nicho, coisa de adolescentes, não como uma forma de cultura de massa. Ao não dizer nada sobre videogame perde-se a chance de comentar sobre uma atividade que ocupa um espaço importante na vida de muitas pessoas.

Por que esse desprezo?
Parte da esquerda considera videogame algo menor, um lazer sem conexão com batalhas sociais ou políticas. Lutas culturais podem não mudar o mundo, mas tocam nos locais onde as ideias das pessoas estão, onde a ideologia é formada. Se a esquerda não tem nada a dizer sobre videogame, outras pessoas terão. Outra razão para a esquerda se interessar por videogame são os arranjos trabalhistas por trás de um jogo. Há muita atividade oculta espalhada pelo planeta. Onde o console é fabricado, a caixinha do jogo, o controle… O videogame mostra como a produção de bens mudou. No Reino Unido, adoramos dizer que Grand Theft Auto é britânico. Sim, a Rockstar [desenvolvedora do jogo] está em Edimburgo, na Escócia, mas a produção aconteceu espalhada pelos quatro cantos do planeta por meio de terceirizados. Essas relações ficaram complexas. A partir dos games, é possível fazer profundas reflexões sobre o capitalismo contemporâneo. Um jogo não é só um jogo.

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A revolução será jogada

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(ASCii/Ilustração)

A esquerda é historicamente conectada a diversas formas de cultura, como literatura, cinema e teatro. Por que videogame é exceção?
Uma das falhas da esquerda é ver videogames como um nicho. Em parte isso se deve à maneira com que videogames foram inseridos no mercado, voltados para garotos e adolescentes homens. É claro que esse segmento ainda joga videogame hoje, mas houve um aumento na diversidade da audiência e de tipos diferentes de jogos. Há quem veja videogame como sinônimo de jogo de tiro militar. Pegar um jogo como Call of Duty e dizer “olha, isto é violento, imperialista” é correto, mas não é construtivo. Limitar a análise a isso desperdiça a chance de entender essa forma de arte de maneira mais abrangente.

A esquerda não conseguiu acompanhar a evolução do videogame?
Penso, como marxista, que o marxismo só é útil se for levado para as massas. Marxismo não se limita a ler O Capital, mas sim levar os conceitos ao mundo e entender o que mudou. Para boa parte da esquerda, videogame é sim complicado. Significa que temos de ouvir as pessoas que fazem e jogam videogame. Temos de falar nossas ideias. Não para dizer [gesticula com o dedo indicador em riste] “somos marxistas, sabemos as respostas”, mas sim para oferecer apoio. Ver como os conceitos funcionam na prática é o método certo para aprimorar teorias e ajudar.

Muitos jogadores recusam qualquer tipo de comentário político em seus jogos. Isso tem sintonia com o comportamento da chamada alt-right?
Qualquer um que tenha jogado videogames online na última década se deparou com comunidades incrivelmente tóxicas. Tenho uma amiga que não usa microfone para evitar ser tratada com sexismo. Por que acontece? Há empresas que dizem ter uma base de fãs tóxica, afirmam haver algo nos videogames que faz isso acontecer. A realidade é que muitas companhias incentivam esse comportamento. A isso, soma-se que muitos aprendem que a esquerda estraga a diversão. A direita se organizou nessas comunidades para reforçar esse quadro. Dizem que a esquerda quer mudar os personagens, impedir armas de fogo nos jogos, ou seja lá o que for.

Como a esquerda pode voltar a ser ouvida pelos jogadores?
Ao dizer que os jogos seriam melhores se os trabalhadores tivessem mais controle no desenvolvimento. Jogos poderiam ter mais variedade, sem exigir pagamento pelo próximo pedaço de conteúdo ou impondo micro transações. Isso gera lucro à empresa, mas não é bom para o jogador.

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O capital

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(ASCii/Ilustração)

Steve Bannon, o guru de Donald Trump, enxergou antes essa dinâmica?
Bannon viu as comunidades de jogadores como um espaço para construir a alt-right. É um lugar fácil de fazer isso, porque a esquerda não está lá para contra argumentar. Porém, seria injusto desenhar uma linha do tempo que começa no videogame e termina em Trump presidente dos EUA, mas certamente o videogame foi um campo de teste. Lá eles ganharam confiança para se espalhar em outros movimentos. Videogame foi uma parte do novelo da alt-right, assim como fóruns de internet e as pessoas se manifestando nas ruas.

Essa discussão social não atrapalha a imersão nos jogos?
É importante que o videogame esteja livre das demandas do trabalho, do capital, um espaço livre para jogar, uma desconexão temporária. No entanto, os jogos são modelados pelo contexto. Para chegar no jogo, você precisa comprar o hardware e o software, assinar um um serviço de internet… a realidade é inescapável. É um bom início para a análise crítica dessa cultura. O que as pessoas tiram dos jogos? Por que jogam? Que sentidos extraem? O que entendem? O que isso nos diz sobre a sociedade? Para mim, fica claro que para a maioria o trabalho é uma porcaria. Isso não é uma descoberta nova, a experiência de trabalho em geral não é boa. As pessoas tentam buscar outras formas de se envolver com o mundo. Videogame é uma dessas maneiras.

Parte dos jogadores encaram essas críticas sociais como ataque ao hobby.
Eu aprecio videogame. Não só como arte e cultura, mas também como uma atividade. Um dos meus maiores problemas com videogame é que eu trabalho em período integral e tenho pouco tempo para jogar. Quando arranjo tempo, me deparo com mecânicas que punem quem não acessa o tempo todo ou que pedem pagamento para atender questões básicas. O capitalismo piorou os jogos. Outra visão é possível. Se os jogos fossem feitos por pessoas com voz na direção, teríamos jogos que ignoram as pressões dos investidores. Seriam mais interessantes caso os desenvolvedores tivessem condições melhores, sem ter de trabalhar por horas excruciantes, sem poder ver suas famílias. Os desenvolvedores são, em essência, jogadores. Querem que as pessoas joguem e se sintam bem.

Sindicalizar para socializar

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(ASCii/Ilustração)

A indústria dos videogames é cheia de segredos, usa muito NDAs (sigla em inglês para acordo de não divulgação). Considerando que os desenvolvedores são os donos do jogo e do capital, como mudar isso?
NDAs são usados de maneira que extrapola sua intenção inicial. Não é mais para impedir que a surpresa do final do jogo seja revelada ou para não alertar a concorrência. Hoje o NDA é usado para evitar que os trabalhadores descrevam como é ruim trabalhar para a empresa ou que a sociedade tome conhecimento de quantas horas extras sem remuneração foram feitas na produção. Os trabalhadores têm o direito de falar sobre sua experiência de trabalho, NDAs são mordaças. Além de pesquisador, ajudou na organização de sindicatos no Reino Unido. Nós encontramos um trabalhador da indústria do videogame que queria começar um sindicato. Começou com uma pessoa, depois virou um grupo pequeno, um grupo grande, outro grupo. São movimentos empolgantes acontecendo na indústria que o capital tenta proibir.

Qual o significado da formação do sindicato?
Os trabalhadores do videogame se organizando é um sinal importante capaz de transbordar a outros ramos. Adoro pensar que alguém jogando um game feito por profissionais sindicalizados pode se inspirar. É um exemplo popular para mostrar que a sindicalização não é algo fora de moda ou das montadoras de automóveis, mas sim uma forma contemporânea de resistência. A sindicalização tem potencial de fazer a indústria do videogame melhorar.

Há grandes movimentações de aquisições de empresas produtoras de videogame nos últimos meses. A EA comprou a Codemasters e a Microsoft comprou a Bethesda, para citar dois exemplos que representam bilhões de dólares. Quais são as consequências desse movimento para os trabalhadores e jogadores?
Há duas importantes dinâmicas na indústria do videogame. Uma delas que acontece há cerca de dez anos é o enorme crescimento de pequenos estúdios. É mais fácil para um pequeno grupo de pessoas fazer um jogo. Algumas das maiores ferramentas para se criar um jogo são gratuitas, só paga se conseguir fazer dinheiro. É uma situação que aponta para a democratização. Por outro lado, a situação que você descreve é importante. Há uma concentração do capital. Por que jogadores devem se importar com isso? Bem, porque o interesse dos jogadores é diferente do capital. O capital não tem interesse que o jogo seja divertido, agradável. O que eles se importam é se o jogo faça dinheiro. Algumas vezes, o interesse é coincidente — se o jogo é divertido, faz mais dinheiro. Mas a intenção primária é gerar o máximo de receita. Significa que algumas das piores práticas da indústria do videogame vão crescer.

Coletando moedas

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(ASCii/Ilustração)

No livro você discute o playbour, híbrido entre trabalho e diversão. Um exemplo disso acontece com os mods, modificações feitas por jogadores gratuitamente, parte importante principalmente dos jogos de computador. O sr. acredita que os modders deveriam parar de fazer isso?
Trata-se de um comportamento que precede a indústria do videogame. Os primeiros games foram feitos não porque as pessoas eram pagas, mas porque queriam. Um jogo que eu joguei muito na adolescência foi Counter-Strike, que começou como um mod de Half-Life. Alguém fez porque queria, sem pagamento — ao menos no princípio. A indústria conta com essa criatividade que acontece sem remuneração, tem um papel chave em como os games funcionam. Jogos online, por exemplo, não são divertidos sozinhos. É preciso de outras pessoas, ter uma audiência. Há uma diferença, porém, entre esse público e as pessoas pagas nos estúdios. As pessoas dentro dos estúdios podem fazer sindicato, greves, demandar. Faz menos sentido no caso do playbour porque o capital não confia do mesmo jeito nessa relação. Porém, as pessoas que contribuem para o jogo com seu trabalho não remunerado, seja jogando ou modificando, deveriam ter uma voz na direção dos jogos, pois são parte da engrenagem que mantém o jogo funcionando. Essa é uma das coisas que me fascinam nos jogos. Tantas pessoas fazendo coisas de graça, fascinantes, criativas. Muitos defendem que sem pagamento as pessoas não fazem nada. Eis um exemplo de pessoas fazendo coisas por puro interesse. É um retrato inspirador sobre a natureza humana.

Game over. A entrevista acabou. O que você vai jogar agora?
Tenho um prazer culpado: gosto de Destiny 2. É um exemplo fantástico para entender os jogos hoje, é enorme, tem milhões de jogadores, a história está completamente quebrada. Eu jogo até sentir a pressão por querer me fazer continuar, uma nova lista de coisas a fazer, aí eu paro. Até que volto. Critico, mas amo. Certamente ele poderia ser melhor.

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