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A luta das mulheres na Índia

Conheça os movimentos feministas e de empoderamento feminino na Índia, assim como os recortes sociais de religião e de castas que os atravessam

por Juily Manghirmalani Atualizado em 21 Maio 2021, 13h00 - Publicado em 20 Maio 2021 23h36
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(Barah/Ilustração)
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epois de falar sobre o embranquecimento da yoga, a censura no cinema indiano e os desafios da população LGBTQIA+ no país, o texto dessa semana é sobre um tema de extrema importância e que merece atenção única: as histórias de lutas e conquistas das mulheres indianas

Sempre de bom tom lembrar que mulheres é no plural e significa que a construção de gênero se manifesta e é construída de formas diferentes dependendo de sua nacionalidade, religião, momento histórico e onde está inserida em construções econômicas e sociais – como classe e raça, entre outras influências que trabalham junto com o “ser mulher”. Falando nisso, vocês já pararam para entender a metáfora de “onda”? Ela fala de algo que surge, possui um levante, atinge um pico e depois cai em “neutralidade” até que surja outra. É assim que os movimentos de mulheres têm sido colocados na história moderna. 

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“As três grandes ondas feministas criaram eco no mundo ocidental, mas, na Índia, pode-se dizer que a história da luta de mulheres acontece em fases mais específicas e ligadas aos momentos econômicos e históricos de lá”

As ondas dos feminismos considerados ocidentais, feitas principalmente por mulheres na França e nos Estados Unidos, possuem três grandes ondas. Elas trouxeram demandas imprescindíveis para o mundo atual, como direito ao voto e ao divórcio, direitos trabalhistas, acesso à saúde e à educação, além de discussões sobre a maternidade. E, nas últimas décadas, as discussões pautadas em sexualidade e raça. Essas três grandes ondas criaram eco no mundo ocidental, mas, na Índia, pode-se dizer que a história da luta de mulheres acontece em fases mais específicas e ligadas aos momentos econômicos e históricos de lá.

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O levante da pauta de mulheres

Entre 1850 e 1915, a Índia vivia entraves coloniais que debatiam com o emergente processo de modernização, junto do crescimento de discursos sobre democracia, igualdade e direitos individuais. É quando surgem movimentos reformistas que trouxeram pautas como gênero e castas para debates maiores. Homens da política da época, com apoio de mulheres hindus brâmanes, deram início a essas discussões com a ideia inerente de erradicar o sati (prática de autossacrifício, que explicarei mais para frente), permitir que viúvas se casassem novamente, proibir o casamento infantil, reduzir o analfabetismo, impor uma idade legal para o consentimento e garantir direitos de propriedade privada. 

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(Barah/Ilustração)

Porém, com o processo de busca pela independência, a Índia abriu espaços para enormes movimentos nacionalistas que associaram a libertação das mulheres e pensamentos feministas com visões ocidentais, atravancando e atribuindo caráter negativo a essas discussões tão necessárias. Entre 1915 a 1947, o país viu a adesão de movimentos de mulheres na campanha “Saia da Índia”, formulado por Gandhi contra a colônia inglesa. Esse líder político legitimou atividades públicas de mulheres indianas, com a entrada massiva no movimento anti violência de desobediência civil contra o Império Britânico. Porém, em ordem contrária, limitou as mulheres logo após a conquista da Independência. Mas como?

Vamos lá: na década de 1920, surgem organizações exclusivamente de mulheres como a AIWC – All India Women’s Conference e NFIW – National Federation of Indian Women. Elas trataram de pautas relacionadas à educação com desenvolvimento de estratégias de subsistência para mulheres da classe trabalhadora e organizaram associações em níveis nacionais. A AIWC, especificamente, estava próxima do Congresso Nacional Indiano e trabalhou com Mahatma Gandhi dentro de movimentos anticoloniais e nacionalistas.


“O processo de busca pela independência da Índia abriu espaços para enormes movimentos nacionalistas, que associaram a libertação das mulheres e pensamentos feministas com visões ocidentais, atravancando e atribuindo caráter negativo a essas discussões tão necessárias”

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Após a independência, em 1947, a AIWC passou a integrar o Partido Comunista Indiano. A participação de mulheres pela libertação indiana desenvolveu consciência política sobre direitos de gênero na Índia independente, abrindo espaço para direitos cívicos de mulheres na constituição que estava se formando. Havia debates sobre pautas como ações afirmativas de inserção no mercado de trabalho e na educação, cuidados infantis – como creche e, salários iguais –, entre outros. Porém, a agenda nacionalista engoliu os movimentos reformistas de gênero. A necessidade de uma consciencia nacionalista, na superioridade indiana como ferramenta em prol da luta contra o domínio colonial, se intensificou. E, dentro desse discurso, o essencialismo cultural colocou a mulher indiana no mais próximo da expressão de feminilidade vitoriana: pura, dócil, cuidadosa, na lógica da dedicação altruísta maternal e fechada ao domínio da casa. 

Rapidamente, o sonho acabou. As mesmas estruturas sociais que precisaram da força das mulheres para libertação nacional contra colonização as colocaram fora do processo de direitos inerentes à tão recém-adquirida democracia e direitos iguais.

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A luta pós-independência

Na terceira e mais atual fase, pós-independência, há novamente a busca por direitos das mulheres sobre tratamento justo pós-matrimônio, direitos trabalhistas e equidade política. De 1947 até os dias de hoje, há uma sequência enorme de lutas feministas que enfrentam, principalmente, o fundamentalismo na política. 

Na década de 1970, com o calor dos movimentos ocidentais e a entrada do pensamento liberal no feminismo, as indianas se inspiraram na briga por salários iguais e outras demandas em relação aos trabalhos, organizando-se para, por exemplo, tentar abolir serviços gratuitos que mulheres estavam prestando como capital barato. A consciência de classe entrou em foco nessa década, trazendo reinvindicação por educação e direitos iguais que também se adaptassem às questões locais – como o dote, a prática do sati, aborto seletivo e estupro sob custódia – junto das pautas de casta, tribos, idioma, religião, classe e regionalidade. 

Como em praticamente todos os lugares do mundo, falar sobre violências que envolvem gênero esbarra, quase sempre, na questão do estupro. E, na Índia, o tema pode ser ainda mais sensível e urgente. O estupro é um dos crimes mais comuns e mais subnotificados contra as mulheres indianas. Ele acontece de diversas formas e possui classificações das mais específicas, como: estupro pelo empregatário, estupro de casta, estupro por autoridade, estupro coletivo, estupro policial, estupro de menores e muitos outros nomes. Em agitações feministas na década de 1980, há novas emendas feitas na lei sobre estupro, a Section 375, sobre a categoria “estupro sob custódia”, que seria a violência acometida dentro do casamento ou com trabalhadoras do sexo. Há inúmeros casos horríveis de incidentes que chegam à grande mídia internacional e que também geram manifestações internas, mas esse é um tema ainda muito sensível de poder sobre o corpo da mulher na Índia. 

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(Barah/Ilustração)


“O estupro é um dos crimes mais comuns e mais subnotificados contra as mulheres indianas. Ele acontece de diversas formas e possui classificações das mais específicas, como: estupro pelo empregatário, estupro de casta, estupro por autoridade, estupro coletivo, estupro policial, estupro de menores e muitos outros nomes”

Para entender tudo isso, não podemos esquecer que a Índia possui uma porcentagem altíssima de zona rural e vilarejos distantes da zona urbana, o que dificulta implementação de leis consideradas progressistas às mulheres. E, mesmo na Índia “moderna”, mulheres enfrentam muitos estigmas culturais decorrentes de uma visão patriarcal de sociedade muito enraizada. O processo de obtenção de direitos à propriedade privada e acesso à educação são os maiores desafios contemporâneos. Das pautas próprias, mulheres indianas negociam com múltiplas opressões patriarcais e expectativas culturais, como: status social e de relacionamento, a importância do filho homem para a linhagem e qual a proximidade da mulher com o membro masculino herdeiro, o dote, a procriação e castas, entre outros. Historicamente, há comunidades indianas com menores níveis de patriarcalismos ou até linhagens que seguem uma hierarquia matriarcal, mas isso não é regra e, sim, exceção. 

Todo esse panorama único sobre a sociedade indiana faz com que o país receba críticas sobre seus maiores movimentos feministas serem centrados em mulheres de alta elite e casta, alfabetizadas e que se espelham nos feminismos ocidentais. É quando, nas últimas décadas, há a criação de organizações e movimentos específicos para grupos considerados minoritários, como específicos de castas, hijras e muçulmanas em território indiano. Nos próximos parágrafos, vamos focar nos casos das mulheres Dalits, mas deixo aqui alguns nomes importantes de mulheres muçulmanas que vocês precisam conhecer: Ismat Chughtai, Rashid Jahan, Fatima Sheikh e Rokeya Sakhawat Hossain. E também de Hijras: Sanam Fakir, Laxmi Tripathi, Abhina Aher e Kajal Nayak.

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Mulheres Dalits: o maior grupo socialmente segregado do mundo 

Outra característica importante para pensarmos movimentos políticos em locais não ocidentais é sua relação com religiões. É muito difícil trazer debates no escopo indiano sem se distanciar de noções religiosas. Uma das maiores religiões indianas é o hinduísmo e, dentro dela, há um outro grupo extremamente marginalizado: as pessoas fora do sistema de castas, os dalits

As mulheres dalits enfrentam opressões de pessoas de castas, como também de homens dalits, além da hierarquia que existe dentro dessa escala social. Elas constituem o maior grupo socialmente segregado do mundo, com o número exorbitante de 2% da população mundial – mais de 153 mil pessoas. Essas mulheres enfrentam taxas maiores de violência, com algumas ações específicas por serem dalits. É comum que a polícia não investigue atos de violência relatados por mulheres dalits. Algumas são forçadas à prostituição e são sistematicamente analfabetas com distanciamento ainda maior de conhecimento de seus direitos. 

Feministas dalits criticam o feminismo e a academia indiana como elitista e a condenam por ajudar a segregar ainda mais ao não colocar as pautas de mulheres dalits como um movimento mais amplo, que necessite colocar gênero e castas como categorias interseccionais. Há registros de movimentos anti-castas e anti-intocáveis, como os dalits também são conhecidos, feitos por mulheres desde a década de 1920. Na década seguinte, há a reunião de dalits em movimentos não-brâmanes – elas possuíam pautas como casamento infantil, dote e viuvez forçada.

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“As mulheres dalits enfrentam opressões de pessoas de castas, como também de homens dalits, além da hierarquia que existe dentro dessa escala social. Elas constituem o maior grupo socialmente segregado do mundo, com o número exorbitante de 2% da população mundial – mais de 153 mil pessoas”

Khabar Lahariya, o primeiro jornal escrito por e para mulheres dalits
Khabar Lahariya, o primeiro jornal escrito por e para mulheres dalits (Yashbas Chandra/Reprodução)

Em 1942, 25 mil mulheres Dalits atenderam uma conferência sobre Mulheres de Classes Baixas na Índia, na qual foram aprovadas resoluções que defendiam direito ao divórcio, denúncia de poligamia, melhores condições de trabalho e envolvimento de mulheres na política, como também melhor educação de classes baixas. 

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Na década de 1970, há a crescente publicação de autobiografias de mulheres dalits que buscaram relatar e fazer história ao registrar suas vivências, tão fora das historicidades e mídia indianas. Elas se inspiraram no maior ativista por direitos dalits até hoje, Bhimrao Ramji Ambedkar. E é somente entre as décadas de 1980 e 1990 que os pensamentos feministas indianos começam a reconhecer as pautas de castas. A entrada de mulheres dalits para congressos e organizações políticas tem crescido exponencialmente desde então. Em 1993, elas enviaram representantes para a Conferência Mundial contra o Racismo e novamente em 2001, no qual defendiam que o sistema de castas precisava ser reconhecido dentro da linguagem de racismo. 

Em 2002, foi criado o primeiro jornal escrito por e para mulheres dalits, o chamado Khabar Lahariya que concentram-se em questões e idiomas de suas próprias comunidades. Em 2009, esse jornal ganhou o prêmio de alfabetização da UNESCO. A primeira década dos anos 2000 viu a pauta de mulheres dalits tomar grande espaço e a luta por direitos tem sido debatida fervorosamente. Infelizmente, as regras no papel estão distantes de se tornarem parte de uma cultura tão complexa quanto a hindu, mas esses movimentos estão trazendo educação e consciência de comunidade como nunca antes. 

Vale conhecer nomes como: Sharmila Rege, Meena Kandasamy, Baby Kamble, P. Sivakami, Challapalli Swaroopa Rani.

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(Barah/Ilustração)

Mulheres que marcaram a história

Para finalizar, vou citar aqui movimentos significativos:

BhaktiO movimento Bhakti 
O movimento teve seu início no século 7 com a ideia de que Deus habita todos os indivíduos e que cada pessoa pode alcançar Deus por meio da fé e devoção. Com o passar do tempo, esse movimento foi considerado uma tentativa de criar uma sociedade igualitária em protesto ao monopólio brâmane. A Índia medieval possuía uma atmosfera de imensa discriminação, com isso as mulheres recorreram à filosofia Bhakti para auto afirmação, luta e busca de alternativas de classes mais baixas e opressões de gênero. Esse movimento é um dos conhecidos fundantes do feminismo na Índia em uma ordem espiritual. 

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Ritual Sati

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A queda da prática de Sati
Um dos grandes marcos da história da Índia foi a abolição da prática Sati, ou seja, o auto sacrifício da mulher viúva no momento de cremação de seu marido. O ato consistia na mulher entrar na pira de fogo ainda viva enquanto o corpo do falecido marido pegava fogo. Esse é um dos atos mais antigos indianos, defendido por muitos como a entrada de ambos do casal juntos no reino dos céus. 

Em 1813, os colonos britânicos usaram a erradicação dessa prática como uma forma estratégica de se inserir na cultura com a justificativa de que os indianos tinham noções primitivas e religiosas sem consciência crítica e que precisavam da inserção das noções européias em seu processo civilizatório. As políticas no subcontinente indiano giraram em torno do argumento de que a cultura indiana tinha um caráter bárbaro e tornou-se base de mudanças nos séculos seguintes. A questão das mulheres continuou central para guerra entre os nacionalistas indianos e os colonos britânicos até a conquista pela independência. 

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Phoolan Devi

Phoolan Devi
Conhecida como a Rainha Bandida, foi uma criminosa indiana que se tornou figura pública ao seguir para política e como ativista de direitos das mulheres no Partido Socialista Samajwadi. Phoolan nasceu em uma família de dalits na zona rural de Uttar Pradesh na década de 1960, foi casada ainda criança, onde sofreu diversos abusos físicos, mentais e sexuais. Para fugir do marido abusivo, Phoolan entrou para uma gangue de bandidos, sendo a única mulher da tribo. Ela se relacionou com um dos líderes e isso gerou grande atrito no grupo, especialmente por ela ser dalit. Em um tiroteio, seu amante foi morto e Phoolan foi levada para uma aldeia, onde os homens da própria gangue cometeram estupro coletivo por semanas. 

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Após conseguir se libertar, ela conseguiu se reunir com os remanescentes bandidos da facção oposta e montou sua própria gangue. Presa em 1983 pela polícia, foi acusada de quase 50 crimes e passou 11 anos na prisão. Em 1994, o governo estadual retirou as acusações contra Phoolan, que foi libertada. Sua rebelião contra a sua situação patriarcal foi retratada pela sociedade como justiça. Foi quando ela se candidatou à política e foi eleita duas vezes. Em 2001, Phoolan foi assassinada por um descendente de um dos filhos da antiga gangue na porta de sua casa em Nova Delhi. 

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Gulabi Gang

Gulabi Gang
Fundado em 2006 por Sampat Pal Devi, essa gangue foi criada em resposta à falta de apoio do Estado para vítimas de violência doméstica de castas baixas e dalits. A gangue é formada por uma maioria de mulheres de 18 a 60 anos que utilizam saris rosas e se concentram em locais distantes das grandes cidades, com sua base no distrito de Banda, em Uttar Pradesh. Apesar da inserção política de mulheres no parlamento, as Gulabi Gang se mantém ativas como vigilantes independentes até os dias de hoje,com um número aproximado de 400 mil pessoas envolvidas.

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As ilustrações que você viu nessa reportagem foram feitas por Barah. Confira mais de seu trabalho aqui.

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