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Mulheres pixadoras quebram a barreira de gênero nas ruas

Irene Avramelos e Carol SUSTO"S falam sobre arte, feminismo, assédio e maternidade

por Beatriz Lourenço Atualizado em 12 mar 2021, 11h48 - Publicado em 12 mar 2021 01h28
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(Carla/Reprodução)

pós fazer um mapeamento dos edifícios que deseja deixar sua marca, Irene Avramelos, também conhecida como Eneri, sai de casa para pixar São Paulo. Quando chega ao local escolhido, geralmente por volta da meia noite, espera a rua ficar quase vazia para registrar as letras no concreto com uma lata de tinta spray. A tipografia desenvolvida é inspirada no estilo CORRÓ, que consiste em letras divididas ao meio e levemente inclinadas.

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(Carla Arakaki/Fotografia)

Com 24 anos de idade e quase 30 mil seguidores no Instagram, Irene faz parte da nova geração de pixadoras que têm como objetivo a retomada do espaço público e a quebra das barreiras de gênero na arte urbana. Suas ações significam o rompimento com o Estado ao contestar os limites da arte, além de funcionar como uma resposta ao machismo e à colonização da cultura nacional que, segundo ela, é pouco ensinada nas escolas e apreciada pela população do país. Esse resgate da identidade foi o motivo principal que fez com que o pixo entrasse em sua vida. “É um tipo de arte muito brasileiro e autêntico, precisamos valorizá-lo”, afirma. “Nosso pixo tem referências daqui mesmo, e não de fora, o que causa uma rejeição grande, assim como acontece com o funk e o samba até hoje. Isso se deve ao fato de sermos condicionados a estudar nossa história pelo ponto de vista de quem nos colonizou, o que contribui para uma falta de identidade cultural”, completa.

“Nosso pixo tem referências daqui mesmo, e não de fora, o que causa uma rejeição grande, assim como acontece com o funk e o samba até hoje. Isso se deve ao fato de sermos condicionados a estudar nossa história pelo ponto de vista de quem nos colonizou”

Irene Avramelos
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(Carla Arakaki/Fotografia)

Faz sete anos que Irene iniciou sua trajetória como pixadora: “Comecei com a tag por ser mais fácil de aprender e de realizar durante o dia. Por onde passava, deixava uma marcação e isso acabou virando parte da rotina. Fiquei estudando por um tempo as letras e, aos poucos, comprando os sprays”. Equilibrando-se em marquises e janelas, ela já atingiu o 12º andar de um prédio no bairro do Belém, o qual se orgulha de ter escalado. “Aprendi a subir em lugares baixos primeiro para entender como agir com meu corpo. Até que vi que o movimento que faço para subir no primeiro andar é o mesmo que preciso fazer para chegar ao último”. A modalidade que pratica, chamada de “escalada”, é a mais perigosa por não envolver nenhum tipo de equipamento de segurança. Apesar disso, a visibilidade e o aproveitamento do espaço são maiores. “São Paulo é referência em escalada para outros lugares do Brasil. É perigoso, mas eu consigo vivenciar a cidade de vários pontos de vista e ter outra percepção dos lugares que passo no cotidiano”, diz.

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Ao mesmo tempo, seguir por esse caminho não foi uma escolha fácil, já que, para isso, Irene precisou desistir de um sonho: o curso de licenciatura em Artes Visuais. Essa decisão veio depois de uma série de processos judiciais somados à dificuldade financeira, que dificultou o pagamento das mensalidades durante a pandemia de Covid-19. “Eu queria dar aula de artes mas, após os processos que recebi, sei que não vai ser possível. Que escola me contrataria? Então acabei repensando e abri mão da faculdade. Se eu voltar, terei que escolher um bacharelado”, revela.

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(Carla Arakaki/Fotografia)

Os problemas judiciais aos que ela se refere são comuns para quem faz parte da comunidade pixadora já que, no Brasil, o ato é considerado vandalismo e se enquadra na Lei de Crime Ambiental, a qual estipula pena de detenção de três meses a um ano, bem como uma multa aos interventores. “Quando o João Doria assumiu o governo e instaurou a política da Cidade Limpa, o valor das multas aumentou muito. Enquadrar a gente nessa lei é contraditório porque crime ambiental, para mim, é o próprio governo que não proporciona saneamento básico para grande parte da população, além das empresas que desmatam e poluem a cidade”. A investigação que faz parte começou com a síndica de um prédio, que ficou descontente com os escritos nas paredes. Após prestar queixa e levar as imagens da câmera, Eneri foi reconhecida por ser uma das poucas mulheres que atuam na capital.

“Eu queria dar aula de artes mas, após os processos que recebi, sei que não vai ser possível. Que escola me contrataria? Então acabei repensando e abri mão da faculdade. Se eu voltar, terei que escolher um bacharelado”

Irene Avramelos
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(Carla Arakaki/Fotografia)

Outro obstáculo que a pixadora enfrenta por ser mulher é o machismo, que é agressivo com as mulheres que transgridem a lei. “Enfrentamos isso em todos os lugares. Para mim, um dos maiores desafios é ir nos rolês sozinha. Eu tomo os cuidados que qualquer mulher toma quando sai, como compartilhar a localização com alguém, coisa que eu sei que homens não precisam fazer”, revela. “Dentro do próprio grupo, o que acaba acontecendo é uma sexualização dos corpos por terem poucas de nós ocupando o espaço. Já na internet, às vezes recebo comentários como ‘que tal fazer uma escalada nua?’, o que é muito desagradável”.

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Ainda que isso cause desconforto e angústia, a violência maior chega por parte de quem deveria proteger: a polícia. Segundo Irene, o confronto é imprevisível e o nível da abordagem depende de quem está conduzindo. “Alguns policiais deixaram de me bater e de me dar banho de tinta por eu ser mulher, mas também já aconteceram situações em que eu apanhei tanto quanto um homem”, declara. “Certa vez, meu companheiro e eu fomos pegos e um deles bateu em nós dois, um seguido do outro. Acho que ele estava praticando alguma luta, pois saímos com marcas nos mesmos lugares”. Ela conta, ainda, que, por vezes, o discurso desvia para o sentido de convites e caronas para casa. “Essa é uma situação muito assustadora, que me deixa acuada e com medo”.

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(Carla Arakaki/Fotografia)

Mesmo com as dificuldades, Avramelos acredita que o pixo transformou sua vida e trouxe o empoderamento feminino que tanto procurava. “Eu acreditava que, por ser mulher, não teria força para subir os andares como um homem. Mas, na verdade, essa é uma habilidade que exige apenas técnica e esforço. Qualquer mulher consegue aprender. No fim, é muito gratificante mostrar que eu consigo ser boa no que faço e incentivar outras mulheres”.

“Eu acreditava que, por ser mulher, não teria força para subir os andares como um homem. Mas, na verdade, essa é uma habilidade que exige apenas técnica e esforço. Qualquer mulher consegue aprender. No fim, é muito gratificante mostrar que eu consigo ser boa no que faço e incentivar outras mulheres”.

Irene Avramelos
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(Carla Arakaki/Fotografia)
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No lado Sul

Assim como Eneri, Carol SUSTO”S também tem seu mundo rodeado pela tinta. Porém, Carol, que tem 36 anos hoje, faz parte da geração dos anos 2000 — que se destacou com ações como o mutirão do pixo no Centro Universitário Belas Artes e a invasão na Bienal de Arte Contemporânea. A pixadora, que agora pinta em Porto Alegre, percebeu que, com o passar do tempo, as garotas reivindicaram maior participação nos rolês. “Antes, tinham muitas meninas que frequentavam os points [lugares onde os pixadores se encontram], mas não eram ativas, geralmente estavam como companheiras de alguém. Hoje, vejo que elas têm o nome reconhecido pela qualidade de seus trabalhos”, afirma. “A diferença entre as gerações mais antigas e as novas é que, agora, elas também estão se arriscando mais. Muitas chegam para mostrar que, até na pixação, não são só os homens que são bons”.

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(Carol SUSTO"S/Divulgação)

Para Carol, isso é uma consequência do feminismo, que ficou mais falado em todas as esferas sociais. Assim, a ideia de igualdade de direitos potencializou a presença das artistas na rua e a demanda por respeito. “Eu não vou dizer que não sofri machismo porque sofri, mas não tinha consciência de que era isso, a gente tinha o costume de ser menosprezada o tempo todo e aceitar. Agora, entendemos que podemos fazer as mesmas coisas que os homens e que somos iguais”.

A maternidade é outro tema que ronda o grupo de pixadoras, pois é algo que as impede de continuar nas ruas. Segundo Carol, o que acontece nesse meio tempo é uma mudança de prioridades, fazendo com que a mulher artista se torne mãe. “Na minha primeira gravidez, parei de pixar quando completei cinco meses. Isso porque, como eu pintava topos de prédios, precisava deitar no chão e não conseguia com a barriga grande”, revela. “Também mudei de estado para dar uma qualidade de vida melhor para a minha filha. No início, foi bem complicado aceitar que tinha que parar. Como a arte fazia parte do meu cotidiano, passei por um processo bem doloroso”.

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“Eu não vou dizer que não sofri machismo porque sofri, mas não tinha consciência de que era isso, a gente tinha o costume de ser menosprezada o tempo todo e aceitar. Agora, entendemos que podemos fazer as mesmas coisas que os homens e que somos iguais”

Carol SUSTOS
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(Carol SUSTO"S/Divulgação)

No entanto, há um ano e meio, a pixadora sentiu que precisava voltar a vivenciar o spray e o concreto: “Quando a minha filha menor fez cinco anos, eu tinha muita insônia de madrugada e saía para fazer alguns pixos no bairro. Como moro com a minha família, não tinha problema em deixá-la dormindo. Quando percebi, já estava ativa novamente. A sensação é muito prazerosa, porque tenho uma relação afetiva com o pixo. Quando estava parada, não deixei de pensar nisso nenhum dia”. Assim como a mãe, a filha mais nova é apaixonada pelas cores. “Ela chega até a me implorar para pintar. No começo da pandemia, peguei o fundo de uma estante e coloquei no quarto para ela poder brincar”, conta. Ainda assim, o hobby não pode ser divulgado a todos. “Eu expliquei para ela o que é o pixo e que ele é um segredo, pois a sociedade não está habituada a aceitar uma mãe de família que é pixadora”.

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(Carol SUSTO"S/Divulgação)
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(Carol SUSTO"S/Divulgação)

Diferente de São Paulo, a cena de Porto Alegre não tem points específicos com dias e horários para acontecer. Porém, com ajuda de mais dois amigos também pixadores, Carol está tentando fortalecer esse movimento, fazendo do lazer um compromisso diário. “Em São Paulo, os pixadores fazem da arte suas vidas. Aqui, por ser menor, são poucos os que se dedicam dessa forma. A gente precisa incentivar para que esses encontros aconteçam semanalmente. Por isso, todas as quartas e quintas-feiras à noite, fazemos divulgação com um texto e fotos nas redes sociais para que as pessoas se interessem a participar”, explica. “Faço isso porque sei que o pixo não vai sair da minha vida tão cedo”.


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As imagens que você viu nessa reportagem foram feitas por Carla Arakaki. Confira mais de seu trabalho aqui.

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