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Da privação à liberdade

Liderado por pastor que já foi interno, projeto transforma antiga unidade de internação em ONG que atende crianças

por Carlos Nhanga Atualizado em 1 fev 2021, 15h39 - Publicado em 12 jan 2021 01h42
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(Clube Lambada/Ilustração)

Eu sei que estou passando mal de boca
Passando muita fome comendo mal (…)
Sofrendo da cabeça
Sofrendo como doente mental
E no presídio de mulheres
Cumprindo a prisão perpétua
Correndo um processo
Sendo processada”
(Stella do Patrocínio*)

O corpo que um dia foi prisão e hoje são sorrisos não é feito de carne e osso, mas de tijolos e cimento. Este corpo-casa traz como alma as vidas de centenas de crianças que passaram por seus cômodos – primeiro como sinônimo de privação; depois, como correria e liberdade.

O ambiente externo é amplo, colorido por cones, coletes e tatames. As risadas das crianças escondem um passado no qual meninas de idade bem próxima às delas costumavam expressar outros sentimentos. O prédio, que no passado foi uma unidade de internação de adolescentes em conflito com a lei, marcou os moradores de Ricardo de Albuquerque, bairro suburbano da zona norte do Rio de Janeiro.

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(Patrick Mendes/Fotografia)

“Eu ouvia os gritos que vinham de lá. Era muito assustador”, relata uma jovem vizinha ao Centro de Recursos Integrados de Atendimento ao Adolescente (CRIAAD) que, por 27 anos, entre 1988 e 2015, recebeu adolescentes do sexo feminino de 12 a 18 anos para cumprimento de medida de semiliberdade. Sob gestão do Departamento Geral de Ações Socioeducativas (Degase), que coordena todas as 24 unidades de internação do estado, as jovens ficavam lá de segunda à sexta e passavam o final de semana com suas famílias. A moradora, que prefere manter seu nome no anonimato, recorda que, na infância, ouvia de sua casa gritos que pareciam ser de raiva ou de briga.

Outra moradora do bairro, Vanessa Cristina, de 24 anos, frequentava o espaço para disputar partidas de futebol com as adolescentes do local. “A gente jogava pela Escola Mário Piragibe e pelo CIEP Mussum contra as meninas daqui do Degase”.

De acordo com a Coordenação de Educação, Cultura, Esporte e Lazer do Degase, atividades como essa eram articuladas e desenvolvidas pela direção da unidade, junto à comunidade no entorno, para reforçar o trabalho pedagógico de reintegração social das adolescentes. A iniciativa, no entanto, não impedia a circulação de boatos sobre uma suposta violência por parte das internas.

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(Patrick Mendes/Fotografia)

Vanessa lembra que chegou a sentir medo de participar dos torneios por conta de relatos de que as adolescentes em conflito com a lei jogavam as partidas portando giletes. Lendas urbanas à parte, ela afirma que era possível se divertir com tranquilidade e que convivia com algumas das internas que estudavam nas escolas do bairro. “Tinham umas que causavam brigas, discussão, eram marrentas. Mas não eram todas, outras eram muito tranquilas, estudiosas, iam para escola mesmo. Uma até foi beneficiada com um computador, porque era uma das melhores alunas da escola”.

Em 2015, a Justiça interditou o local a partir de um pedido do Ministério Público do Rio de Janeiro que sinalizava os riscos à segurança das adolescentes e de funcionários devido à atuação do tráfico de drogas na região, que fica em um dos acessos ao Complexo do Chapadão. Segundo consta na ação civil pública, dois episódios influenciaram a solicitação: a invasão de um traficante para fornecer drogas às adolescentes e a recusa da Polícia Militar em conter um motim, sob alegação de que o acesso ao local dependia de um veículo blindado. As adolescentes foram encaminhadas para uma unidade em Nova Friburgo, que até então atendia somente internos do sexo masculino.

Liberdade cantou
“Eu sei que o meu passado
Eu prestei bem atenção como foi
Eu continuo prestando atenção como é
Mas o futuro
Eu não sei como vai ser
É difícil de eu descobrir
Com vai ser o meu futuro”
(Stella do Patrocínio)

Pastor Pedro Carlos é um dos colaboradores da ONG que ocupou o espaço outrora chamado de Centro de Recursos Integrados de Atendimento ao Adolescente. Equipamentos e itens de recreação são armazenados nas antigas celas e dividem espaço com as camas de concreto e as pichações deixadas pelas ex-internas.

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Para Pedro – que já infringiu a lei na adolescência – a aflição das crianças e de visitantes diante das trancas e das celas é natural e pode ser usada como uma oportunidade para reflexão. “Fui preso no ano de 1997 e ganhei minha liberdade em 2000. Lá dentro, fui alcançado pela graça de Deus e fui recuperado, apesar de o presídio não servir para recuperar ninguém. O presídio, qualquer casa de recuperação, tão somente é uma escola do crime. Uma escola onde vão se formar grandes criminosos. Então, nós tentamos usar esse ambiente para trazer a eles uma grande reflexão, sobre como é a vida de um preso”, afirma o pastor.

“O presídio, qualquer casa de recuperação, tão somente é uma escola do crime. Uma escola onde vão se formar grandes criminosos. Então, nós tentamos usar esse ambiente para trazer a eles uma grande reflexão, sobre como é a vida de um preso”

Pastor Pedro Carlos
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(Patrick Mendes/Fotografia)

A nova fase do espaço começou três anos após a desativação da unidade do Degase. Com o objetivo de organizar o local e usá-lo para trazer benefícios à comunidade, a ONG Restaurar assumiu a administração do espaço e começou a desenvolver projetos sociais nele, como campanhas de vacinação, exames de vista e atividades esportivas para crianças e adolescentes. O local, que antes era utilizado como instrumento de punição e privação de liberdade, se tornou o Espaço Cultural e Social Restaurar.

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A necessidade de utilizar um espaço que antes servia como instrumento de privação de liberdade vem da escassez de espaços públicos de lazer e cultura em Ricardo de Albuquerque. Dos 64 equipamentos culturais do município do Rio de Janeiro, 17 estão localizados na AP3 (Área de Planejamento 3, que engloba bairros do nordeste da cidade), e nenhum deles fica em Ricardo de Albuquerque, bairro que possui quase 30 mil habitantes.

Vanessa Cristina, que outrora jogava bola com as internas, voltou a frequentar o espaço nessa nova fase. Agora são seus filhos que jogam futebol no local. “O projeto é de grande importância porque tira as crianças da rua, é um pouco de diversão pra eles”.

O receio de Vanessa em se envolver em alguma briga com as internas, durante os jogos na adolescência, foi substituído por um medo mais real. A violência no bairro deixou de ser um boato. “[Antes] não tinha muita violência, não. Hoje que a polícia vem, atira sem nem ver quem é… Hoje tem mais”. Segundo dados da plataforma Fogo Cruzado, entre janeiro e outubro de 2020 houve 63 tiroteios nas proximidades do Espaço Restaurar. Um terço (20) deles, com participação de policiais.

“[Antes] não tinha muita violência, não. Hoje que a polícia vem, atira sem nem ver quem é… Hoje tem mais”

Vanessa Cristina, moradora do bairro
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A falta de recursos é o principal entrave para a manutenção do Restaurar como único espaço de lazer do bairro e que atende cerca de 30 crianças por dia, com atividades recreativas e lanche. Mesmo com a cozinha herdada dos tempos de Degase, não há produtos ou colaboradores para preparar refeições. Com a pandemia do novo coronavírus, que já infectou mais de dois milhões de brasileiros, pessoas que perderam suas casas se abrigaram no espaço, e Pastor Pedro é uma delas. “Nosso maior intuito é ver eles vencendo na vida. Ainda que seja muito difícil, temos que acreditar no impossível, acreditar que um dia o sonho deles vai se realizar. Essa é a nossa maior vitória”, diz o pastor.

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(Patrick Mendes/Fotografia)

*Stella do Patrocínio (1941 – 1992), uma mulher negra nascida no Rio de Janeiro, foi poeta e passou a maior parte da vida presa em instituições psiquiátricas. Suas falas poéticas foram reunidas no livro “Reino dos bichos e dos animais é o meu nome.” (Azougue Editorial, 2001)

Essa reportagem foi produzida com o apoio da Énois Laboratório de Jornalismo, por meio do projeto Jornalismo e Território, e editada por Elena Wesley e Fred Di Giacomo, do data_labe

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