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ives. Reportagens sobre o boom das lives. Lives comentando reportagens sobre o boom das lives. Ok, todos já sabem que, por causa do isolamento social, milhares de artistas viram na transmissão online ao vivo uma saída para continuar se comunicando com seu público (e, em muitos casos, ganhar dinheiro). Mas alguns músicos, cineastas, atores e escritores, brasileiros e estrangeiros, estão explorando outros formatos, menos óbvios, na quarentena e chegando a se reinventar.
Nas primeiras semanas da pandemia, começaram a pipocar no Instagram e no Twitter memes com a frase: “2020, dirigido por David Lynch”. Com razão, pois a sensação de irrealidade que marca os dias atuais lembra os enredos do cineasta americano, chamado de “primeiro surrealista popular” pela lendária crítica de cinema Pauline Kael. Como uma comprovação de que, de alguma forma, Lynch está em seu habitat natural, ele tem atravessado a quarentena com tranquilidade… gravando vídeos de previsão do tempo. Sim, isso mesmo. Puro Lynch, pode repetir para si mesmo, leitor. Os vídeos, que estão no seu canal no Youtube, David Lynch Theater, trazem o diretor de Mulholland Drive e Veludo azul no escritório de casa comentando o tempo de Los Angeles, onde mora, e viraram sensação na internet. “Eu mataria para ter um GPS com a voz dele”, escreve um fã entusiasmado na caixa de comentários de um dos vídeos.
Um filtro azul deixa todos os vídeos sobre o tempo ainda mais, hmm, peculiares. O canal ainda traz Lynch, carismático como sempre, fazendo reparos em móveis, numa versão WTF de canais de faça-você-mesmo, como Manual do Mundo. Outro notório morador de Los Angeles também vem se dedicando a trabalhos manuais enquanto se isola socialmente: o ator canadense Seth Rogen, de comédias como O virgem de 40 anos e Ligeiramente grávidos, que tem postado no seu Instagram (@sethrogen) objetos de cerâmica de sua própria autoria. O hábito é antigo, mas durante a pandemia a produção se intensificou.
São belas peças, diga-se de passagem, que vão de moringas a vasos de plantas. Claro que a produção caseira de Rogen inclui cinzeiros variados: além de usuário notório de maconha, o ator e seu amigo Evan Goldberg abriram uma empresa, Houseplant, para explorar as possibilidades trazidas pela legalização da erva no Canadá. Poucos nomes do cenário artístico americano, no entanto, têm explorado tanto as possibilidades na quarentena como Ahmir “Questlove” Thompson e Tariq “Black Thought” Trotter, do grupo de hip hop The Roots (que, aqui no Brasil, muitos conhecem por ser a banda de apoio de Jimmy Fallon).
Com shows desmarcados por causa do coronavírus, os dois decidiram colocar em prática várias iniciativas sobre as quais vinham falando há anos. A programação inclui sets de DJ com Questlove que duram horas, “Conversations in the Diaspora”, uma roda online de conversa com artistas africanos, um podcast chamado “Questlove Supreme” e uma série de lives chamada “Streams of Thought With Black Thought”, no qual Tariq debate com outros artistas e lê trechos de textos próprios ou de livros que o têm inspirado. Essa efervescência, claro, só aumentou depois do assassinato brutal de George Floyd por policiais no estado americano de Minnesota.
No Brasil, outro artista negro extremamente talentoso (e inquieto) tem capitaneado um projeto parecido: trata-se de Amarelo Prisma, iniciativa multiplataforma do rapper Emicida. Iniciada em maio, ela mira promover a transformação pessoal e social de indivíduos através de conteúdos que contêm narrativas originárias do músico e diversos entrevistados. Dividida em quatro movimentos (paz, clareza, compaixão e coragem), ela se divide entre vídeos no Youtube (toda quarta), podcast (sextas) e imagens e textos espalhados por redes sociais. E você aí com preguiça de lavar a louça acumulada…
“Penso muito sobre a escola e nos buracos deixados pela informação que recebi ali. Se a escola tivesse me instigado, com dúvidas que me fizessem olhar para o lugar onde nasci e entender que as plantas podem ser comestíveis, que taioba não é capim… Essas informações não chegaram por vias tradicionais”, disse o artista aO Estado de S. Paulo, indicando que Amarelo Prisma tenta preencher essas lacunas educacionais.
Ajustes de percurso
Muitos artistas viram projetos que vinham sendo gestados há meses – e mesmo anos – serem adiados ou até cancelados pela pandemia. A atriz Debora Falabella estava para estrear o longa-metragem Depois a louca sou eu, dirigido por Julia Rezende e baseado no livro homônimo da escritora Tati Bernardi. O lançamento, claro, foi suspenso, mas Dani, a neurótica protagonista do filme, passou a dar as caras na conta de Instagram de Debora, que começou a postar IGTVs com esquetes estreladas pela personagem. Resultado: sucesso, medido pela explosão de likes e reportagens louvando a criatividade da atriz e enxergando na ideia um filão a ser explorado. Emissoras de TV e plataformas de streaming já estariam planejando explorar o formato.
“Os vídeos que estamos fazendo para essa campanha são uma maneira de deixar o cinema vivo enquanto não sabemos quanto tempo isso vai durar. Uma forma de continuarmos falando de cinema através da Dani, uma personagem que tem muito a dizer ao público nesse momento em que todos estão mais ansiosos e com medo”, explicou a atriz à “Folha de S. Paulo”.
O Instagram também foi o terreno escolhido pela escritora Noemi Jaffe para explorar artisticamente, em tempos de lançamentos de livros adiados e livrarias fechadas. Autora de livros incensados pela crítica como Não está mais aqui quem falou e O que ela sussurra, ambos pela Companhia das Letras, ela começou a publicar pequenos contos/crônicas no feed da sua conta (@noemijaffe) e não na legenda das fotos (onde geralmente moram os muitas vezes famigerados textões). Nascido do improviso e invadindo um território até então restrito aos chamados instapoetas, o resultado tem chamado atenção pela força lírica. Mais uma possibilidade que nasceu da necessidade de os artistas se expressarem nestes tempos de covid-19.
Como Seth Rogen, o cantor pernambucano Otto foi buscar numa arte que originalmente não é a sua um caminho de exploração artística – e também um meio de tentar manter a sanidade entre quatro paredes. Ele tem postado telas coloridas, pintadas por ele mesmo, no seu Instagram (@ottomatopeia). Na sua maioria são imagens geométricas, que à primeira vista não conversam com sua música. Num dos posts, ele revela o que o levou a pintar: “Meus desenhos são reflexos dos meus pensamentos. Eles me levam pra um lugar restaurador, reflexivo”. Quem não está precisando ir para esse lugar, certo?