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O enfermeiro do rolê

Uno Vulpo, autor do perfil @sentomesmo no Instagram, fala a real sobre drogas e a importância da redução de danos

por Uno Vulpo - @sentomesmo Atualizado em 16 mar 2021, 11h54 - Publicado em 16 mar 2021 01h54
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(Ilustração/Redação)

unca usei drogas. As pessoas que me conhecem e escutam tais palavras saírem da minha boca normalmente se chocam. Logo eu, que sempre gostei de discutir o assunto em rodas de amigos e geralmente sou o primeiro a brigar quando alguém começa a falar bobagem a respeito, nunca cheguei em vias de fato e o máximo que eu tive de experiência foi um cigarro que fiz de orégano, aos 6 anos, pois vi alguém na TV fumando e achei engraçado. Ao mesmo tempo em que não uso, meu círculo social quase inteiro é composto por ávidos utilizadores e, talvez para me enturmar, aproveitei minha vivência na medicina para me aprofundar no assunto e me tornar ao menos o “enfermeiro de plantão” – a enfermeira Joy de Pokemón. Para se caso acontecesse de algum amigo “emburacar” no meio do rolê (gíria para quando você entra numa bad durante o uso de Ketamina), eu conseguisse ao menos estabilizar “a gay”.

Justamente nessa premissa, uma vez publiquei no falecido Facebook, logo antes do Carnaval, uma tabelinha que mostrava as drogas que podem ser, ou não, misturadas. Naquela loucura de carnaval – saudades –, em que no começo do dia estamos todos montados e no fim dele somos basicamente uma mistura de pó (com ou sem trocadilho) e purpurina, algo que me preocupava era não conseguir chegar nos blocos da quarta-feira de cinzas com meus amigos vivos e sem aquelas ressacas fortíssimas. Assim, dei uma estudada e publiquei a tal tabela, na tentativa de que eles, pelo menos, não morressem e tivessem a mínima capacidade de me acompanhar em um dos blocos que eu mais esperava naquele carnaval (e em outros carnavais).

“Em toda essa história, uma coisa que me chama atenção é o fato de que muitas das pessoas que fazem uso de drogas não as conhecem profundamente ou entendem como elas funcionam em seus corpos. Essa é a realidade do conhecimento de drogas atualmente: a desinformação. 

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Em toda essa história, uma coisa que me chama atenção é o fato de que muitas das pessoas que fazem uso de drogas não as conhecem profundamente ou entendem como elas funcionam em seus corpos. Já ouvi casos de amigos que, naqueles encontros de Grindr, um dos aplicativos de encontros gay mais famosos, foram surpreendidos com um pozinho ou um comprimido e tomaram sem entender ou saber o que aquilo poderia causar. E essa é a realidade do conhecimento de drogas atualmente: a desinformação. 

adesivos relacionados a drogas

A discussão a respeito das drogas no Brasil é fechada muitas vezes em singulares círculos acadêmicos ou em rodas de amigos. Raras são as vezes em que tais grupos trocam informações entre si. Muitas vezes, o mundo acadêmico discute questões e possibilidades baseadas em universos hipotéticos e pouco realistas, e as nossas rodas de amigos discutem as questões a partir de vivências e erros cometidos. Aprendemos muitas vezes na sorte ou acaso que misturar GHB (droga popular no mundo gay, que, em doses mais potentes, é o famoso “Boa Noite Cinderela”) com outras drogas pode dar ruim, e o que mais me preocupa é justamente que tal sorte pode não acontecer a tempo de evitar mais uma morte no meio de uma boate. 

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Por mais antiga que seja aquela famosa – e, na minha opinião, icônica – propaganda da Eliana nos anos 90 falando “Não use drogas”, parece que estamos parados no tempo, já que continuamos a repetir o tal mantra como se ele, magicamente, fosse em algum momento funcionar. O nosso atual governo, em comparação com outros países, está retrocedendo cada vez mais na política de drogas (que foi reformada e assinada pelo presidente Bolsonaro em 2019), diminuindo os investimentos em redução de danos e lidando com os entorpecentes como se o seu único problema fosse a dependência química e a solução fossem as organizações religiosas que implementam terapias de reabilitação extremamente duvidosas.

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ilsutração em vermelho e branco de emojis com diversas emoções

“Pelo menos não morrer”

Explicando o que é redução de danos, a também chamada RD: a expressão compreende o conjunto de estratégias que visam atenuar os efeitos negativos das drogas sobre quem usa. Ela pauta a educação em drogas e reflexão acerca do seu uso, no intuito de prevenir mortes ou doenças. Em outras palavras, é chegar naquele amigo que vai usar o padêzinho (gíria para cocaína) dele de todo jeito, mesmo com milhões de sermões para o contrário, e explicar para ele formas de pelo menos não morrer.

Para mim, a redução de danos é muito mais. Ao meu ver, ela dá para quem faz uso de drogas o poder de entender o que pode ou não acontecer com seu corpo e sua mente, mudando o vínculo com o uso delas e conscientizando sobre os riscos. Por fim, a RD discute drogas dentro do contexto onde elas estão, diferente das estratégias de abstinência, por exemplo, que consideram que o único caminho para todos é parar com o uso.

“A redução de danos compreende o conjunto de estratégias que visam atenuar os efeitos negativos das drogas sobre quem usa. Ela pauta a educação em drogas e reflexão acerca do seu uso, no intuito de prevenir mortes ou doenças”

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Em exemplos práticos, reduzir danos é chegar em uma turma de alunos do Ensino Médio e explicar sobre os riscos de exagerar na bebedeira, orientar as pessoas sobre os riscos de dirigir alcoolizado ou contar para um amigo sobre os riscos de comprar pó (cocaína) de origem duvidosa. Por meio de tais estratégias, lidamos com as drogas sem hipocrisia, já que o tema é tratado a partir da realidade, vontade e possibilidades de cada um. E quanto aos resultados, no mínimo, evita-se uma bad trip chata e no máximo mais uma morte por desinformação.

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(Skylar Kang/Pexels/Redação)

Reduzindo danos no mundo

Existem vários exemplos ao redor do mundo de como a estratégia funciona e é bem implementada. Em Portugal, por exemplo, a política de drogas não mais é um assunto competente ao judiciário. Agora, a partir da ótica da saúde pública, o país tem fortes investimentos em reduzir danos, com distribuição de antídotos para overdose por opióides, seringas para uso de drogas injetáveis e até mesmo espaços onde o usuário pode se drogar sob supervisão.

E não é preciso ir tão longe para ver outro lugar que também investe em melhorar a relação com as drogas. O Uruguai, que legalizou a maconha em 2013, permite o cultivo de cannabis num sistema que é regulado pelo Estado. Quem deseja fazer uso recreativo deve se registrar para comprar a droga na farmácia, sabendo que a substância tem origem em produtores locais domésticos e empresas autorizadas. O país ainda passa por muitos problemas e questões envolvendo o mercado ilegal, mas ao menos agora é um tema enfrentado de maneira transparente.

“Numa abordagem nacional, a visão ainda é conservadora e limitada, com incentivo à política de abstinência, que de acordo com os estudos mais recentes no assunto, se mostra uma terapêutica que mais traz danos do que benefícios aos dependentes químicos”

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Por outro lado, no Brasil, tivemos pontuais ações e investimentos em redução de danos. Um deles foi em 1989, em Santos, cidade que passou a distribuir seringas aos usuários de drogas injetáveis para diminuir os contágios de HIV por meio do compartilhamento de perfurocortantes. Outro projeto foi o paulistano de Braços Abertos, de 2014, durante a gestão de Fernando Haddad, que promovia diversos atendimentos e ações sociais na região da Cracolândia, em São Paulo. O programa oferecia atendimentos médicos, psicológicos e com assistentes sociais. A partir de aconselhamentos e consultorias, os atendidos também eram direcionados para vagas de emprego, abrigos ou casas de reabilitação. Numa abordagem nacional, a visão ainda é conservadora e limitada, com incentivo à política de abstinência, que de acordo com os estudos mais recentes no assunto, se mostra uma terapêutica que mais traz danos do que benefícios aos dependentes químicos. Fora isso, focar a discussão dos entorpecentes apenas na adicção é esquecer de todos os outros contextos em que eles estão incluídos, e fechar os olhos para os demais problemas que estão ocorrendo, como o fato de pessoas cada vez mais jovens e desinformadas estarem usando drogas, por exemplo.

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(Pexels/ Cotton Bro/Redação)

Usando padê sem morrer

Beleza, agora que você está pós-graduado em redução de danos, aqui vão algumas dicas úteis que acumulei em alguns anos de guerra.

ilustração de papéis LSD

Chemsex
Para dar uma quebrada no gelo ou animar um pouco mais a noite, está ficando cada vez mais comum usar alguns tóxicos debaixo dos edredons, no chamado Chemsex, como a Luisa Alcantara e Silva contou em texto aqui mesmo na Elástica. A dica de ouro nesses casos é que, mesmo que você acredite e ame profundamente aquele boy que você acabou de conhecer no Grindr, nunca use NADA que você não tem certeza do que é. Drogas como poppers (uma espécie de lança-perfume) ou maconha são mais tranquilas, pois têm aparência mais característica, mas se o crush te oferecer comprimidos ou um pozinho meio duvidoso, diz que você está tomando antibiótico e não pode usar nada ou já inventa um motivo para voltar para casa.

Debutantes
Se for sua possível primeira viagem, sugiro que você vá com calma e num ambiente tranquilo. A primeira dica é nunca ter sua primeira vez com uma droga estando sozinho. Procure alguém de sua confiança e que vai cuidar de você caso algo dê errado.Uma dica é fracionar a dose na primeira vez que for usar. Ao iniciar no padê, por exemplo, ao invés de usar um pino inteiro de primeira, experimente aos poucos, observando como seu corpo reage. E, por favor, compre produtos com uma procedência minimamente confiável na sua primeira vez.

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Em festas
A dica do Chemsex vale para as festas também: NÃO USE O QUE NÃO SABE O QUE É. Fora isso, se você entrar em alguma bad trip ou começar a passar mal, chame um colega, vá para um local mais isolado e tome bastante água. E se estiver em grandes grupos, é importante que alguém esteja num estado minimamente sóbrio durante todo o evento para que, se algo der errado, a sua festa não se torne uma sequência de Clímax, filme do Gaspar Noé.

Acabou no hospital?
Por todo o amor que você tem a si mesmo: NÃO ESCONDA DAS MÉDICAS(OS) que você está lá por conta de drogas. Muita gente, por medo de ser preso ou denunciado, acaba mentindo nessas ocasiões. A mentira pode levar a uma confusão no tratamento que você precisa receber, o que pode ser fatal. Então, cuide de você, depois você se preocupa com o B.O. (literalmente).

E claro, a famosa tabelinha
Falei no texto sobre uma tabelinha de mistura de drogas e resolvi deixar ela disponibilizada aqui para você já providenciar uma versão plastificada para ficar na carteira. Garanto que é um ótimo salva-vidas para quando bater aquela dúvida no próximo, e tão esperado, carnaval. OBS: Na minha opinião, as pessoas têm de ser monogâmicas com as drogas, mas se você não tiver a fim, guarde no coração a tabelinha abaixo.

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(Instagram @sentomesmo/Reprodução)
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