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Rotina fraturada

Resultado de uma pesquisa de dois anos, o fotógrafo Gui Christ lança o livro “Fissura”, que retrata a vida das pessoas na Cracolândia

por Artur Tavares Atualizado em 3 jul 2020, 11h42 - Publicado em 3 jul 2020 09h56
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(Clube Lambada/Ilustração)

omeçou no início dessa semana a campanha de financiamento coletivo do livro Fissura, do fotógrafo Gui Christ. Resultado de uma pesquisa de campo que durou mais de dois anos, a partir da grande intervenção da polícia militar na região da Cracolândia em 2017, a publicação compila a história de um sem-número de usuários de drogas que tentam sobreviver em meio ao lixo, às pessoas e ao caos urbano.

Profissional de longa data na fotografia documental, com trabalhos publicados em veículos de renome como o Washington Post, Time Magazine, National Geographic e BBC, Christ foi incansável para realizar Fissura. Montou semanalmente um estúdio móvel para trocar retratos 3×4 gratuitos para os moradores da Cracolândia em troca de ouvir suas histórias, tentar entender mais sobre um substrato social extremamente marginalizado pela sociedade e pelo poder público. Percorreu antigos casarões dos anos de ouro do café, no início do século 20, que acabaram se tornando cortiços, motéis, e hotéis unicamente dedicados ao consumo do crack, e também as ruas que cortam os bairros da Luz, do Bom Retiro, de Higienópolis e dos Campos Elísios, onde o mercado de drogas a céu aberto funciona.

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(Gui Christ/Divulgação)

Com Fissura, Gui explicita como o abandono social é a causa maior para a degradação da Cracolância, enquanto a droga aparece como uma espécie de ponto final à situação de quem vai parar ali: “A sociedade acredita que o dependente químico se torna aquele flagelo humano por causa da droga, mas, na verdade, a droga é o final de tudo, quando eles já estão no flagelo”, ele explica. “Muitos homens caem no crack por desespero, principalmente relacionado ao desemprego. A mulher que usa crack não é uma puta. Ela usa o crack para aguentar a vergonha que é se prostituir para conseguir sustentar os filhos. O moleque de rua não usa o crack porque é marginal, mas porque precisa esquecer da fome e do frio. A droga é o último subterfúgio antes da pessoa se extinguir por completo.”

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(Gui Christ/Divulgação)

Como surgiu a ideia de fazer uma série sobre a Cracolândia?
O projeto nasceu por causa de uma série de reportagens que fiz na região a partir da ação policial realizada em 2017 sob o governo de João Doria, que foi marcada por muita violência. Eu nunca tinha entrado na Cracolândia. Morria de medo, tinha preconceito. Lá no Rio de Janeiro, cresci ouvindo que entre ruas sujas e prédios abandonados as pessoas perdiam suas almas no Centro de São Paulo. É como eu pensava a região.


“Em um dos dias da ação policial, um trator derrubou a parede de um desses hotéis de crack, cheio de pessoas dentro”

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Um pouco antes, em 2016, fiz um projeto no Cine Marrocos, um prédio que havia se tornado uma ocupação. Fiquei quase um ano lá, e então o prédio foi tomado pela polícia, prenderam uma rapa de gente. Descobriu-se que o prédio era uma fachada do PCC. Todas as lideranças do prédio, as pessoas com quem eu falava, foram presas por associação ao tráfico. Fui ameaçado de morte, pensavam que eu tinha sido o informante. Quando estourou a ação policial na Cracolândia, não fui por medo, esperei uma semana até ir para lá a primeira vez. Andando por ali, quem mora na região começou a me pedir para entrar nos casarões, ver o estrago que a polícia tinha feito com seus pertences pessoais. Eram verdadeiros palacetes dos tempos dos barões do café, de gente como Santos Dumont, a elite que já governou o Brasil. Eles estão detonados, se tornaram cortiços, ocupações, e não apenas pela Cracolândia, mas pelo declínio da região toda. A crise da bolsa de valores americana de 1929 afetou muito a exportação brasileira de café, na mesma época em que os barões já estavam saindo do bairro. Isso iniciou a decadência daquele entorno.

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(Gui Christ/Divulgação)

Em um dos dias da ação policial, um trator derrubou a parede de um desses hotéis de crack, cheio de pessoas dentro. Toda a imprensa correu para lá. Foi quando tive o contato com o ambiente, percebi quantas coisas eles tinham, e como a mídia sempre tratou esse assunto de apenas um lado. Ninguém se preocupava com o usuário, ao mesmo tempo que eles também são pessoas muito arredias à mídia, porque sabem qual é a imagem deles. Saí perguntando pelos moradores que ficaram sem teto, e me indicaram uma ONG ali próxima, a Cristolândia, que oferecia banho e comida. Cheguei lá e estava lotado, os serviços da prefeitura haviam sido suspensos, então havia poucas organizações oferecendo água e alimentação. Pedi autorização para falar com as pessoas dali, pra que elas contassem suas histórias, e comecei o trabalho.

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(Gui Christ/Divulgação)

E como foi a recepção?
No primeiro dia, não rolou nada. Estavam todos relutantes. Mas quando eu estava indo embora, um cara me abordou e pediu para eu tirar uma foto pqra ele usar em documentos. Ele queria procurar emprego e tinha perdido sua papelada. Só que eu estava sem luz na hora, e fotos oficiais precisam ter flash. Tirei mesmo assim, então veio uma mulher pedir um retrato para enviar para a família, para mostrar que estava viva. Percebi que seria o jeito de fotografar essas pessoas. Na semana seguinte, voltei com um estúdio móvel, ofereci fotos 3×4 grátis. Em 15 minutos, fez uma fila gigante. Fiz o ensaio, até cheguei a publicar em revistas brasileiras, então decidi continuar o trabalho.

Em 2018, passei a montar o estúdio lá pelo menos uma vez por semana. Meio que me tornei um colaborador da ONG, porque era mais um motivo para as pessoas irem até lá. Além do banho e da comida, tirar fotos para documentos. A associação de moradores da região também passou a me ajudar a entrar nas casas, ao mesmo tempo que a prefeitura havia começado uma ação de reurbanização por ali.

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(Gui Christ/Divulgação)

O que você buscava quando começou a retratar essas pessoas?
A minha ideia sempre foi mostrar quem é o dependente químico, a pessoa taxada pela sociedade de nóia, cracudo, crackeiro. A imprensa sempre mostra o assunto de longe, não sabe de fato quem é aquela pessoa. É sempre a pessoa fumando um cachimbo, bem sensacionalista. Grande parte do meu trabalho como documentarista é transformar estatística em rosto. Dou nome próprio a quem não tem uma imagem. Ao mesmo tempo, fui estudando, descobri um livro que mudou minha percepção pelas drogas, Um preço muito alto, do Carl Hart, uma das maiores referências do mundo em neurociência. Ele conta como a cocaína e o crack chegaram no bairro dele, nos Estados Unidos, na periferia de Miami, e como as substâncias afetam quimicamente o cérebro.

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Durante as fotos, percebi que as pessoas estão realmente à margem. A sociedade acredita que o dependente químico se torna aquele flagelo humano por causa da droga, mas, na verdade, a droga é o final de tudo, quando eles já estão no flagelo. Para mim, o dependente químico da Cracolândia é como um fantasma. Ninguém vê, mas quando vê, tem medo. São invisíveis, estão por toda a cidade, mas quando uma pessoa se depara com ele, se assusta.


“A minha ideia sempre foi mostrar quem é o dependente químico, a pessoa taxada pela sociedade de nóia, cracudo, crackeiro. A imprensa sempre mostra o assunto de longe, não sabe de fato quem é aquela pessoa”

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(Gui Christ/Divulgação)

Muitos homens caem no crack por desespero, principalmente relacionado ao desemprego. A mulher que usa crack não é uma puta. Ela usa o crack para aguentar a vergonha que é se prostituir para conseguir sustentar os filhos. O moleque de rua não usa o crack porque é marginal, mas porque precisa esquecer da fome e do frio. A droga é o último subterfúgio antes da pessoa se extinguir por completo.

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(Gui Christ/Divulgação)

Como se dá esse processo urbano que parte do declínio dos barões de café, que transforma toda aquela região central da cidade na Cracolândia tanto tempo depois?
Os Campos Elísios são o único bairro planejado da cidade. Foi construído por dois empreiteiros estrangeiros para comportar os barões do café que vinham para São Paulo através das duas estradas de ferro que desembocavam lá. Foi onde morou toda a aristocracia da cidade. Com a quebra da Bolsa de Nova York, muitos desses empresários quebraram e foram saindo de lá.


“A Cracolândia conceitual é um pouco maior do que a Cracolândia física. Toda aquela região de Campos Elísios, Luz, Higienópolis e Santa Cecília está ligada”

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Antes, a região dos Campos Elísios era pantanosa, alagava em épocas de chuva. Parte das pessoas que saiu dali criou o bairro de Higienópolis – se chama assim porque realmente tem a ver com higiene –, um pouco mais no alto. A zona da Cracolândia passou a ser semi-industrial, ao mesmo tempo que a Estação da Luz abriu para o transporte público viário, assim como a Júlio Prestes. Isso acelerou muito o declínio, porque em locais que geram uma aglomeração de pessoas, o primeiro comércio a aparecer perto é o de bebidas. Ao mesmo tempo, as prostitutas que ficavam no Brás foram tiradas do bairro, que estava começando a ser remodelado para receber os judeus que estavam chegando na cidade, e acabaram indo para a região da Luz.

A Cracolândia conceitual é um pouco maior do que a Cracolândia física. Toda aquela região de Campos Elísios, Luz, Higienópolis e Santa Cecília está ligada. O processo durou décadas, e quando chegaram os anos 1940, se instalou ali a indústria da Boca do Lixo. Uma das teorias é que o lixo era deixado ali para ser levado pelos trens para descarte. Acaba se tornando o maior índice de violência, alcoolismo e prostituição da cidade. A trinca sempre atrai bandidagens, e mais recentemente, traficantes.

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(Gui Christ/Divulgação)

Na década de 1960, muito antes do crack, aqueles casarões já tinham se tornado cortiços, motéis e hotéis para o uso de drogas. Quando chega na década de 1980, surgem os primeiros relatos de crack na cidade, na região do Bom Retiro. Os traficantes encontraram ali um local seguro para ficar, porque havia uma série de prédios abandonados, descaso do Estado, sem policiamento, um local com muita passagem de pessoas. É a lógica mercantilística da droga. Começaram a vender pra quem ia pegar o trem, e também para os moradores de rua. Hoje, São Paulo tem cerca de 16 mil moradores de rua, e naquele final dos anos 1980 o número já era grande. A região foi se perpetuando como maior comércio de drogas a céu aberto no mundo.

Em resumo, o crack começou a ser vendido há apenas cerca de 40 anos, enquanto o processo de declínio urbano durou mais do que cem. Você percebe, portanto, que o crack não é o motivo do declínio da região, e sim a falta de políticas públicas.

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(Gui Christ/Divulgação)

Qual a importância de fotografar os cachimbos encontrados durante a realização do ensaio fotográfico?
Quando comecei a fotografar os hotéis de crack e os casarões, um dia um amigo sugeriu que eu fotografasse os cachimbos. Eu pensava que todos eram iguais. Mas quando conversei sobre o assunto com o representante da ONG É de Lei, descobri que eles tinham uma coleção de cachimbos. Eles faziam cachimbos de madeira e entregavam para os usuários, e pegavam deles aqueles feitos com metal, porque queima a boca, causa doenças como herpes e hepatite. Fotografei a coleção e passei eu mesmo a trocar os cachimbos das pessoas. No final das contas, fotografei quase 100 cachimbos e fiz mais de 2 mil retratos das pessoas.

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(Gui Christ/Divulgação)

Existe uma peculiaridade no crack, os usuários não têm dinheiro para comprar cachimbos. Hoje, uma boa pedra de crack custa em torno de R$ 20, mas rende bastante, mais do que uma bebida alcoólica. Mas muitos usuários ficam em turno, fumam o crack e tomam cachaça. Acabam mais ficando sob o efeito do álcool. Às vezes, cheiram cocaína ou fumam maconha. É um ciclo que eles fazem quando estão se drogando. Enquanto gastam seu dinheiro todo com drogas, acabam pegando lixo para fazer os cachimbos. Tem desde feito de potinho de iogurte até válvula de TV, cano de cobre de fogão, tubo de ensaio de laboratório, maçã, que depois ainda come. É uma relação com o lixo, uma situação social perversa. Mostrar os cachimbos revela essa relação.


“Eles faziam cachimbos de madeira e entregavam para os usuários, e pegavam deles aqueles feitos com metal, porque queima a boca, causa doenças como herpes e hepatite”

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(Gui Christ/Divulgação)

Para contribuir com Fissura, clique aqui. Confira também a reportagem fotografada por Gui Christ para a estreia da Elástica.

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