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Joguei tudo pro alto e fui viver meus sonhos. Por três meses

Ter um período sabático é o sonho de muita gente. A publicitária Talita Cardozo conta como sua experiência foi para o brejo

por Talita Cardozo Atualizado em 1 jul 2020, 18h45 - Publicado em 1 jul 2020 09h53
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(Clube Lambada/Ilustração)

u sempre fui uma criança com uma baita imaginação. Desenhava bem, escrevia bem, era a melhor da turma. Então, você já pode imaginar a profissão que eu escolhi, certo? Exatamente, publicitária.

Essa reportagem fica mais gostosa com a playlist abaixo:

Veja, não foi minha primeira opção. Mas venho de uma longa linhagem de gente sem dinheiro. Que paga o aluguel, mas parcela a fatura do cartão. Que faz empréstimo pra pagar o outro empréstimo. Classe C que chama, né? E não dá pra entrar na faculdade de cinema com a segurança de saber que você vai poder viver diferente no futuro, a não ser que seu pai tenha um banco. Ou pelo menos tenha algum dinheiro no banco.

Eu até entrei na faculdade de Artes. E na de Letras. Na real, eu quase zerei as Universidades Públicas do Rio de Janeiro, mas tinha pânico de escolher uma carreira que me fizesse continuar morando num apê de dois quartos pra seis pessoas. Tinha que ser melhor. Tinha que ser pelo menos um apartamento de três quartos. Ou, pelo menos, trocar o Méier pela Tijuca – o que claramente seria subir de vida, a Tijuca é a zona sul da zona norte. Eu queria mais. E publicidade foi o jeito que eu encontrei de trabalhar com criatividade e ter dinheiro ao mesmo tempo.


“Classe C que chama, né? E não dá pra entrar na faculdade de cinema com a segurança de saber que você vai poder viver diferente no futuro, a não ser que seu pai tenha um banco. Ou pelo menos tenha algum dinheiro no banco”

Funcionou? Bom, eu não só saí do Méier, como saí do Rio de Janeiro e fui morar em São Paulo. Trabalhei nas melhores agências, cheguei lá. Fui morar na Vila Madalena, esse grande paraíso hipster, onde você pode comprar um pão de fermentação natural por 30 contos em qualquer esquina. Mas, criativamente falando… digamos que seja muito difícil dar tudo de si por um resultado que é avaliado sob qualquer ótica, menos a criativa. Passar dias estudando uma paleta de cor e ouvir que a azul é a cor favorita do fulano, “então faz azul, vai”. E “esse layout tá ótimo, mas podemos seguir com aquele que tem o lettering ‘20% de desconto’ ocupando 80% da página?”. O problema não era a propaganda, era eu. Precisávamos dar um tempo.

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Voltei a desenhar. Redescobri um universo de produção que só eu controlava e aprovava. O meu trabalho era um negócio, era da equipe, da empresa, da empresa que contratava a empresa. Mas minhas pinturas eram só minhas. Pronto, estava lá a minha felicidade concentrada das 8 da noite às 3 da manhã. E estava ali estabelecido o meu segundo turno de trabalho. Era o que precisava pra ter dinheiro e ser feliz ao mesmo tempo. Tinha achado a equação.

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(Talita Cardozo/Ilustração)

O problema é que isso não era sustentável. Meu primeiro turno de trabalho muitas vezes equivalia a uns 2 turnos e meio de trabalho, e tudo o que eu precisava ao chegar em casa era ligar a TV pra desligar um pouco a cabeça. Como manter uma produção artística regular desse jeito, sem deixar de acompanhar todas as séries da Netflix, da HBO e do FX? Muito difícil. Me sentia permanentemente culpada. Frustrada comigo. Com o trabalho. Com o final de Dexter.

Comecei a fantasiar com essa galera que joga tudo pro alto e vai viver seus verdadeiros sonhos. Era a época da cerveja artesanal. Da ex-publicitária que agora fala mal de publicidade no seu canal de lifestyle, enquanto faz merchan de shampoo e bisnaguinha. Do casal que foi viajar o mundo lavando pratos. Eu achava tudo isso lindo – menos a parte de lavar pratos. Imagina fazer um mestrado na Holanda? Uma residência na Irlanda? Aí, sim, eu conseguiria focar. Não dá pra focar no Brasil, gente (vocês sabem que eu estou sendo irônica, certo?).

Entendi que precisava de um sabático. Gente cool tira sabático. O Sagmeister, famoso designer gráfico, tira um sabático a cada sete anos e todo mundo acha isso demais. Como eu não tinha pensado nisso antes? Se você não apostar na sua ideia, quem vai apostar? Cara, estava resolvido: eu ia tirar um sabático. Agora era só juntar dinheiro.


“Entendi que precisava de um sabático. Gente cool tira sabático. O Sagmeister, famoso designer gráfico, tira um sabático a cada sete anos e todo mundo acha isso demais. Como eu não tinha pensado nisso antes?”

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No papel, tava perfeito. Mas eu não sabia juntar dinheiro. A cada 100 reais que eu guardava, eu via uma brusinha, e eu estava tão cansada, poxa, eu trabalho tanto, eu merecia uma brusinha. E de brusinha em brusinha, lá se ia meu sabático pelo ralo.

A solução seria o FGTS. Dei um passo ousado: chamei meus chefes numa sala e, com o sovaco suando, expliquei a situação. Pedi pra que, se tivesse um corte no futuro, eles considerassem me demitir – eu precisava ficar um tempo longe da propaganda. Precisava jogar tudo pro alto e viver a utopia millennial.

Olha, não sei dizer se deu muito certo ou muito errado, mas entrei na sala pedindo pra ser mandada embora e saí da sala promovida. Eu juro. Ainda não consigo dizer exatamente como isso aconteceu. Só sei que foi assim.


“Disseram que sempre chovia trabalho pra freelancer. Eu estava só o John Travolta perdido naquele meme”

Dois anos se passaram, mas eu não tinha desistido do meu sabático ainda. Finalmente juntei dinheiro. Me planejei. Me planejei tanto que resolvi congelar meus óvulos pra ter tempo de fazer tudo. Era o último passo. Mas no processo descobri que congelar óvulos, além de muito desagradável, custa o preço de um Doblô. E lá se foi a grana do meu sabático de novo, dessa vez num freezer cheio de bebês.

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Não me dei por vencida. Bolei um novo plano: já que eu não conseguia me organizar financeiramente, ia virar freela. Assim, podia tirar um tempo pra fazer uns cursos, produzir, e, quando a grana apertasse, trabalhava por um tempo determinado. Claro que daria certo. Eu não precisava sair do país pra focar, poderia fazer isso aqui, onde tenho minha rede de contatos, minha família, meu mozão. Toda amiga que era freelancer falava que chovia trabalho. Era a solução perfeita.

Tenho vergonha de dizer isso, mas o Temer me ajudou. Por favor, não contem pra ninguém, mas graças ao nosso vampirinho querido havia agora a possibilidade da demissão por comum acordo. Finalmente, consegui. Eu estava lá, com quase todo o dinheiro do FGTS, pronta pra viver meus sonhos de verdade e ser o que todo publicitário sonha em ser: ex-publicitário.


“Voltei, e nada de freela. Os boletos continuavam. O aluguel. O plano de saúde. A ração premium dos gatos. A diarista. O remédio de ansiedade. A psiquiatra. A psicóloga”

O primeiro mês foi lindo. Peguei um freela logo na semana seguinte. Produzi pra caramba em casa. Na primeira semana livre, eu já tinha feito um monte de páginas do livro que eu estou escrevendo à mão, tinha pintado sei lá quantos miniquadros, entrado no curso de gravura em metal. Agência tem um ritmo insano, e levei esse ritmo pro meu trabalho pessoal. Eu ia dormir tarde, porque precisava daquilo. Eu estava feliz, como nunca.

No segundo mês, precisei comprar um computador novo. Meu Mac tinha mais de 10 anos de idade, e pra fazer freela eu precisaria de um computador que prestasse. Também comprei um iPad, porque, você sabe, é muito legal ilustrar no iPad. Comprei também o case do iPad. E a caneta do iPad. Viajei pra Portugal, afinal já estava marcado e, bem, todo mundo viaja no sabático, certo? Voltei, e nada de freela. Os boletos continuavam. O aluguel. O plano de saúde. A ração premium dos gatos. A diarista. O remédio de ansiedade. A psiquiatra. A psicóloga.

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(Talita Cardozo/Ilustração)

Disseram que sempre chovia trabalho pra freelancer. Eu estava só o John Travolta perdido naquele meme. Cadê renda entrando? E se acabasse o dinheiro? E se eu tivesse que voltar a morar com a minha mãe? Pior: e se eu tivesse que ir morar com a minha mãe num apartamento de dois quartos pra seis pessoas no Méier, depois de velha?

Nunca fiquei tão ansiosa na minha vida. No meio do terceiro mês, todos os freelas entraram de uma vez só – obviamente. Trabalhei até tarde direto. Aprendi a calcular a minha hora de trabalho. Aprendi um monte de coisas, mas já não estava conseguindo ir pro curso de gravura, porque eu precisava trabalhar com uns prazos apertados. Todos os prazos são apertados. Estava tudo igual a quando eu trabalhava na agência, só que nunca sabia quando ou quanto eu ia receber. O que eu estava fazendo da minha vida?


“Eu fiquei um mês feliz e dois com o cu na mão. Não estava disposta a ter que dar dez passos pra trás pra começar tudo de novo com 35 anos de idade”

Cara, o conforto que eu tenho foi suadaço. Eu queria muito trabalhar com arte, mas fazer freela não me deixava tempo pra fazer isso, e nem me deixava manter o padrão de vida que eu conquistei. Se é pra perder alguma coisa, faz mais sentido perder o incerto. Eu fiquei um mês feliz e dois com o cu na mão. Não estava disposta a ter que dar dez passos pra trás pra começar tudo de novo com 35 anos de idade. Tenho muita conta pra pagar – e não há documentário sobre minimalismo no Netflix que me faça ser de outro jeito. Eu precisava abandonar o sabático pra viver meu verdadeiro sonho: não passar perrengue.

No quarto mês, recebi um convite foda. Na verdade, recebi três convites fodas. Acabei voltando a trabalhar em agência, com tranquilidade. Meu sabático durou três meses. Percebi que preciso de estabilidade. E se você pensa que sou uma vendida: sou mesmo. E sou cara. Felicidade também é dormir com os boletos em dia.

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