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Clima Quente

O cineasta Brendo Garcia fala sobre opressão, liberação, falocentrismo e outras questões em saunas na Europa, Ásia e América Latina – ele é um entusiasta!

por Brendo Garcia Atualizado em 19 jun 2020, 19h33 - Publicado em 1 jun 2020 08h00
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(estúdio lambada/Ilustração)

á quem diga que as saunas são o que há de mais inclusivo no mundo LGBTQI+. Mas esses espaços existem quase há tanto tempo quanto as civilizações modernas. Podemos ler e ver relatos desse comportamento em diversas obras, algumas de grande relevância, como “Banhistas em San Niccolo”, de Passignano (1559 – 1638), que retrata homens banhando-se juntos em hammams (salas de banho turco) e demonstrando comportamento afetuoso entre si.

Mas, ao compararmos as saunas do milênio passado com as dos dias de hoje, temos ali o grande objetivo desses espaços: a liberdade. A homossexualidade sempre foi alvo de perseguições, por isso as saunas criavam um espaço seguro de descoberta e envolvimento sexual. As práticas ali sempre foram livres de julgamentos e possibilitam, até os dias de hoje, que seus usuários sintam-se inseridos em um mundo utópico de aceitação. No discurso, isso é muito bonito.

Essa reportagem fica ainda mais gostosa de ler se você apertar play:

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Mas, na prática, não é bem assim. Vivemos em uma sociedade machista e patriarcal, em que homens precisam provar sua masculinidade e a todo momento seus sentimentos, expressões e vontades são postos contra uma cartilha do masculino, opondo-se a qualquer expressão que traga a feminilidade. As práticas homossexuais não escapam dessa perseguição promovida pelo machismo que atinge a todxs, principalmente aqueles que ainda não conseguiram tornar pública sua orientação e seus desejos sexuais e amorosos. Dado este fato, homens que se relacionam com homens buscam espaços que os acolhem de forma segura e que os blindam do julgamento do mundo contemporâneo – surgem, assim, as saunas “gays”.

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(Julia Jabur Zemella/Ilustração)

Mas você, estimada pessoa do outro lado da tela, depois desta breve introdução, pode estar se questionando: “saunas são antros de ISTs, são misóginas, só tem prostituição, promovem é uma falsa liberdade.” Calma! Concordo que, sim, muitas delas podem trazer um pouco de tudo isso, mas também são espaços importantes para muitas pessoas. E, por isso, trago relatos de algumas saunas que visitei pelo mundo. Aliás, assim que chego em um país, faço duas coisas: vou a um mercado local e depois a uma sauna. No mercado, entendo alguns dos hábitos sociais daquele país; já na sauna, posso vivenciar o outro lado do desejo, aquele que fica preso entre quatro paredes.

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“Assim que chego em um país, faço duas coisas: vou a um mercado local e depois a uma sauna. No mercado, entendo alguns dos hábitos sociais daquele país; já na sauna, posso vivenciar o outro lado do desejo, aquele que fica preso entre quatro paredes”

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(Julia Jabur Zemella/Ilustração)

Beabá da Sauna

Tá, mas digamos que eu ainda esteja perdido e não saiba nem o que é uma sauna. Vamos lá: uma sauna gay é como outra qualquer em sua essência: um banho de calor que é feito em salas projetadas especialmente para este tratamento, que podem ser revestidas em madeira – chamadas, então, de sauna seca, pois seu vapor apresenta baixa umidade e seu aquecimento pode ser feito por pedras ou elétrico. Há também as saunas a vapor, em que seu sistema consiste em salas com alta umidade e normalmente revestimento cerâmico ou de pedras. Parte do ritual da sauna é fazê-lo de toalha, roupa de banho ou sem roupa.


“As saunas LGBTQI+ são inspiradas nesses rituais de bem-estar, mas transportadas ao mágico mundo do vale homossexual”

As saunas LGBTQI+ são inspiradas nesses rituais de bem-estar, mas transportadas ao mágico mundo do vale homossexual. Normalmente, elas são compostas por sauna seca e úmida, espaços para sexo privativo – cabines, quartos ou até luxuosas suítes –, espaços para sexo lúdico e para BDSM (conjunto de práticas sexuais que reúne bondage, dominação, submissão e sadomasoquismo), normalmente equipados com balanços, cadeiras projetadas para sexo, correntes e algemas. Também é comum que ela se configure como um labirinto com pouca luz para ativar outros sentidos (acredite, o tato e o faro serão seus melhores amigos), com glory holes, que são buracos feitos em corredores ou até entre quartos e cabines para possibilitar a interação dos usuários entre mais de um dos espaços. Piscinas aquecidas, jacuzzis e até piscina para nado são comuns; cinema, podendo ser erótico ou não, além de academia, fumódromo, bar e claro, chuveiros também fazem parte da experiência.

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(Julia Jabur Zemella/Ilustração)

Mapa do prazer

Sabendo de tudo isso, divido com vocês minhas impressões sobre saunas que visitei pelo mundo. Antes, vamos estabelecer alguns pontos de partida: o texto é narrado sob as experiências de um homem cis, branco, gay e os espaços visitados, em sua maioria, são para homens cis/trans que praticam sexo com homens cis/trans.

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(Julia Jabur Zemella/Ilustração)

São Paulo

A nossa primeira parada é a capital paulista, justamente na cidade onde não existe amor, como já dizia Criolo. No coração do Arouche existe uma das melhores saunas que já visitei, a 269 Chilli Pepper. Com infra-estrutura para receber mais de 600 hóspedes por dia, há possibilidade de alugar armários, cabines, pequenos quartos com banheiro privativo – o que mais gosto – e, se quiser fazer uma festinha, há também quartos maiores. A sauna é extremamente limpa e os funcionários compõem parte da nossa sigla LGBTQI+, o que nos deixa confortáveis e seguros. Há duas saunas, uma seca e outra úmida, algumas piscinas, um cinema com filmes eróticos gays cis e claro, um grande labirinto para se perder e se encontrar. É uma sauna 24 horas, com alta rotatividade. Preservativos estão sempre a disposição, mas falta distribuição gratuita de lubrificante. Lembrando que sexo anal com boa lubrificação diminui risco de fissuras anais e consequentemente de infecções sexuais (ISTs), fica essa dica para visitar este e outros espaços que mencionarei: use preservativos abusando da lubrificação, ou se está em PreP e optou como método único de proteção contra o HIV, a lubrificação é igualmente importante – nada de cuspir.

Vale lembrar que o dono da sauna protagonizou dois eventos trágicos: o primeiro é que, há alguns anos, ostentava com orgulho a frase “R$ 12 mil por uma diária para uma mulher visitar o espaço”, comentário misógino e prepotente. E, nas últimas eleições, o mesmo sugeriu, via Twitter, possível apoio ao atual presidente no segundo turno. Ainda hoje, não fica claro se a presença de mulheres cis e/ou trans é possível. E quando falamos em liberdade sexual e no direito de ocuparmos com nossos corpos esses espaços, observamos que esse conceito é bem diferente da prática. É visível a repulsa de corpos por frequentadores que não exibem sinuosos músculos e a gordofobia – presente inclusive nas próprias imagens de divulgação – não acolhe, exclui, reforçando o estereótipo do corpo padrão. Cada indivíduo tem uma história marcada em seu corpo e está ali para gozar da vida, assim como você, então respeite e cuide. 

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Nova Iorque

A cidade dos negócios tem alguns redutos para relaxar, mas nada supera seus lendários cruising bars. Provavelmente as saunas mais famosas pertencem ao mesmo grupo e são elas: East Side Club, mais próxima do Central Park, e West Side Club, um pouco ao sul da ilha de Manhattan. O estado de Nova Iorque tem leis contra a nudez pública, mesmo em espaços privados, então estes são espaços um tanto estranhos. É comum ouvir um aviso pedindo para que não haja interação sexual nos lugares comuns da sauna, por isso os gentlemen costumam não interagir, ficam em suas cabines e te convidam a entrar. A sala de TV exibe o jornal local, há máquinas de café e de petiscos pela sauna, além de uma pequena academia. O sistema de entrada é bem particular: na recepção, é necessário colocar seus ítens de valor dentro de uma caixinha, que é trancada em um armário com várias outras caixas. Você vai receber a chave que a abrirá – guarde bem, tá? Outro fato é que trata-se de um clube privado, então é necessário fazer um cadastro e pagar uma taxa de afiliação. E o mais curioso: a sauna fica dentro de um prédio comercial, então, ao frequentá-la durante o dia, você dividirá o elevador com pessoas de ternos. 

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(Julia Jabur Zemella/Ilustração)

Paris

Atravessando o oceano atlântico, a cidade luz tem algumas das saunas mais inclusivas que já conheci. A maior e mais famosa da cidade, Suncity, tem inspiração indiana. Nos três andares, vemos diversos quadros de arte erótica indiana e deuses do hinduísmo, além de festas dedicadas ao país. Como é uma sauna antiga, com elementos visualmente pesados e de difícil manutenção, ela passa uma sensação de pouca limpeza. Por isso, usar sempre chinelinhos – que não são fornecidos gratuitamente, mas há a venda por 5 euros. O espaço tem jacuzzi, piscina, cabines, labirinto, glory hole, cadeira interativa, academia, sauna seca e úmida – mal reguladas, não espere relaxar. Pasme, o cinema da Sauna exibe filmes blockbuster. O bar serve água e refrigerante gratuitamente, cobra apenas pela cerveja e sanduíches. Como Paris é uma cidade multicultural e turística, isso torna o espaço interessante para trocas e experiências com pessoas das diversas nacionalidades que estão ali. A sauna conta com checagem viral para HIV praticamente todos os dias à noite, além de preservativos e lubrificantes gratuitos, também tem políticas para acesso de mulheres travestis, mas há um perverso racismo com as pessoas negras. É muito forte a segregação que parte dos usuários fazem a não exercerem nenhum contato com homens negros, buscando apenas seus pares brancos, e isso é um um reflexo de como a sociedade reage fora da sauna. Além desta, há outras saunas para casais, homens e mulheres, porém a discriminação com distinção de valores a mulheres cis (normalmente com acesso gratuito) e com mulheres trans e travestis (o mesmo preço que homens cis/trans) existe, cabe a nós levantar esse diálogo e questionamento. 

Londres

Duas saunas da capital inglesa chamam a atenção. A primeira, em Waterloo, é feita abaixo da linha do trem, o que é uma experiência única, e funciona 24 horas por dia. Por vezes, você se sente dentro de um filme. Mais parecida com um bunker, a sauna tem pequenas cabines com portas de ferro, área para BDSM, piscina e, quando o trem passa, ouve-se o barulho sob os trilhos e uma leve tremida nas estruturas do espaço. A segunda sauna também é 24 horas e fica no Soho. É bem mais nova, menor, e traz um conceito de facilidade (que, na prática, não ajuda tanto). Logo na recepção, é preciso deixar os objetos de valor (incluindo poppers, se você estiver levando) dentro de uma caixa vermelha com chave. Vão te entregar a chave, assim como em Nova Iorque. Só que, depois de tirar a roupa, deve-se ir até área de check-in/out para entregar a chave e trocá-la por uma pulseira. Ali, vão te pedir para abrir sua toalha para mostrar que não leva nada consigo – drogas, cigarros, isqueiro, armas ou que mais pudesse levar. É possível utilizar academia, piscinas e três boas saunas (sendo uma seca, uma úmida e outra seca com aquecimento sob as pedras, como as antigas casas de banho romanos que existiam na inglaterra). O espaço é bem diverso, tem um cheiro agradável (me lembra um creme da Lush) e ótima limpeza. 

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(Julia Jabur Zemella/Ilustração)

Berlim

A Alemanha é um grande reduto de diversidade e liberdade sexual. A cidade é famosa por suas diversas festas e clubes de cruising, e suas saunas são tão importantes quanto. Acredito que foi uma das melhores experiências em saunas que já vivenciei. Como relaxamento e bem-estar, ela oferece três saunas: seca (com um protocolo composto por diversas intensidades de calor), úmida e biosauna – que combina óleos essenciais, cromoterapia, calor e umidade variadas. Além da inspiração industrial futurista, o que é a cara de Berlin, ela é bem tecnológica, oferecendo pulseiras NFC para abrir o armário. O que também é bem peculiar nessa sauna é a presença de uma sala de relaxamento para meditação ou descanso, onde é proibido sexo, e também um espaço de relaxamento com filmes sobre o reino animal. 

Siem Reap

Outra ótima experiência em uma sauna foi no Cambodia. O acesso era difícil, a aventura já começava ao andar pelas pequenas ruas de terra no meio de transporte mais icônico da Ásia, os tuk-tuks. A que visitei em Siem Reap fica em um charmoso hotel para homens cis/trans e tem saunas com extrema qualidade técnica e alguns protocolos de spa e relaxamento disponíveis no local por um valor extra. Há uma grande piscina na frente das saunas, além de espaços privados. E, como é um hotel, o acesso dos hóspedes é gratuito, contribuindo para o movimento. O espaço era receptivo para homens cis/trans/não-binários e o público muito diversificado, variando entre cambojanos e gringos. 

Essas experiências têm um importante ponto em comum: de leste a oeste, as saunas compartilham da liberdade, mas a legitimidade dessa liberdade é questionável. Como espaço de descoberta sexual, em um mundo que vivenciamos nossa existência dentro de tantas regras, esses espaços por vezes caem em contradição, tornando-se opressores. É nossa responsabilidade provocar, cobrar e exigir equidade e liberdade, tornando-os seguros para todxs. Afinal, o gozo é livre. 

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