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Potência que nos habita

Uma experiência transformadora a partir de uma das mais primitivas expressões do corpo feminino: o orgasmo. É o que a Casa Prazerela oferece, e muito mais

por Ana Melo Atualizado em 22 jun 2020, 10h14 - Publicado em 9 jun 2020 09h45
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(Clube Lambada/Ilustração)

 escritor tcheco Milan Kundera escreveu: “Quando o pólo norte se aproximar do pólo sul quase a ponto de tocá-lo, o planeta desaparecerá e o homem ficará num vazio que o atordoará e o levará a ceder à sedução da queda.” Esse é um dos muitos trechos de A Insustentável Leveza do Ser que me marcaram na época em que li o livro; curiosamente, tempos depois, essa frase me voltou à cabeça, junto com outros pensamentos aparentemente sem sentido ou conexão entre si, durante um evento inédito na minha vida: uma sessão de terapia orgástica.

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Sim, o nome é autoexplicativo, mas é bom não parar na primeira interpretação – a abordagem proposta pela Casa Prazerela, núcleo de sexualidade positiva localizado na Zona Oeste paulistana, vai muito além de ajudar a mulher a descobrir o que é um orgasmo de verdade. A terapia orgástica é uma sessão de duas horas conduzida por uma terapeuta que, após uma conversa e uma massagem pelo corpo todo, estimula a área genital pelo toque e, a seguir, por vibradores diversos com o objetivo de apresentar à mulher sua potência orgástica – na maior parte das vezes, muito pouco explorada durante o sexo, digamos, convencional. 

“Desde o momento em que nascemos, nós, mulheres, somos convidadas a nos distanciar do nosso eu, do nosso mundo interno, do que é habitar um corpo”, diz Mariana Stock, criadora do projeto. “Mesmo as mulheres que se consideram super liberadas raramente se sentem à vontade na própria pele. Somos muito programadas para dar prazer primeiro ao outro, nunca a nós mesmas, ainda que a gente racionalmente defenda o contrário. Eu mesma vivi com essa crença por muito tempo”, explica. Este é o propósito principal da Prazerela: deixar para trás um longo legado de sexualidade negativa e começar a construir uma nova, positiva. “Não dá para mais uma geração passar por tudo que nós passamos e, quando chegar aos 30, 40, continuar se reprimindo e não entrando em contato com essa potência orgástica.”

“Mesmo as mulheres que se consideram super liberadas raramente se sentem à vontade na própria pele. Somos muito programadas para dar prazer primeiro ao outro, nunca a nós mesmas”

Mariana Stock
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(Mariana Caldas/Fotografia)

No entanto, se essa potência encontra suas origens no sexo – ou, melhor, na sexualidade –, este, defende Mariana, é só o começo. “Sexualidade vai além do sexo, é pulsão de vida. É muito com essa escuta e com esse olhar analítico que a gente conduz o trabalho aqui.”

Claro, importante dizer, a experiência entra no campo subjetivo da mulher, o que significa que, muito provavelmente, cada uma vai sentir uma coisa diferente. Para uma amiga, que marcou uma sessão logo depois da minha recomendação enfática, as sensações foram puramente físicas – ela relata ter desligado a cabeça e alcançado diversos orgasmos “sem trabalho”. Para outra amiga, que nunca tinha gozado, foi uma descoberta assombrosa em vários sentidos – inclusive, claro, a do primeiro orgasmo.

Mas, voltando à citação de A Insustentável… e a uma tentativa de traduzir como a sessão bateu para mim: a experiência certamente transcendeu o campo do prazer sexual. Claro, dá prazer, sim (e muito), mas não me lembro de ter rolado 1 ou 100 orgasmos propriamente ditos – foi uma sensação contínua que se intensificava conforme a sessão avançava. Absolutamente nada parecido com o que eu entendia por orgasmo até então. Quando Kundera fala sobre o “desejo da queda”, ou, para lembrar outra frase importante do livro – “a vertigem (…) é o desejo da queda do qual nos defendemos aterrorizados” –, para mim, em determinado momento da sessão, a sensação foi similar à descrita na obra: a de satisfazer plenamente o desejo da queda, mesmo com uma ponta (ou mais) de medo; de me soltar de todas as tensões neuróticas da vida comum e despencar de volta a um núcleo muito sensível com o qual perdi contato faz tempo. A tal vertigem, que assustava a princípio, representava a total liberdade – pelo menos durante aquelas duas horas.

Achou uma gigantesca viagem mística? Talvez seja. Mas, precisamente por me considerar muito mental, é que a coisa toda me pareceu uma escapada da minha confortável zona racional e uma espécie de retorno ao meu instinto – a uma potência que eu não sabia, ou nem lembrava, que morava em mim. Quando dei esse relato para a Mariana, durante nossa conversa no dia seguinte à sessão, ela me disse: “É isso! É a sensação de que a gente consegue acender uma cidade inteira.”

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Embora o inconsciente seja matéria-prima da psicanálise – a “descoberta” mais bem-sucedida de Sigmund Freud –, existe um imenso universo de terapias que têm o objetivo de acessá-lo por meios que vão além da fala ou da interpretação dos sonhos. Alcançar o inconsciente através do toque já é uma técnica bastante explorada por outras abordagens terapêuticas, como a bioenergética.

“É muito importante em termos de respeito e inclusão, porque quando digo que você não precisa acreditar em nada para viver isso aqui, estou falando que toda mulher pode”

Mariana Stock

A criadora do projeto, que além de um diploma em comunicação também tem formação em psicanálise, defende que a terapia orgástica pode ser uma poderosa ferramenta de acesso aos nossos cantos mais obscuros, mais reprimidos, e um interessante complemento a um processo terapêutico que a mulher já esteja vivendo. “Muitas mulheres que chegam aqui vêm por indicação de suas psicólogas e psicanalistas”, conta ela. Na Prazerela, são cinco terapeutas – três delas já tinham formação em tantra, e todas passaram por uma formação específica para a terapia orgástica. Mariana destaca, ainda, a supervisão quinzenal com a filósofa e psicoterapeuta Regina Favre. 

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(Mariana Caldas/Fotografia)

A experiência

“O que é sexualidade para você?”, me perguntou, de cara, Ana, a terapeuta. Se ela tivesse me questionado sobre o sentido da vida, talvez fosse mais fácil responder. Comecei a formular uma resposta, ela me interrompeu: “Não, não perguntei o que é sexo, mas sexualidade”. Dali em diante, decidi parar de atuar como mulher bem-resolvida sexualmente e comecei a mais perguntar do que responder. Ana me deu uma aula: falou sobre como a mulher tem dificuldade de gozar com o corpo – muitas vezes, precisamos recorrer a um sem-fim de fantasias para conseguir chegar lá – e como, desde meninas, somos programadas para entender o sexo como um tabu, o que, por mais que viremos adultas modernas e liberadas, permanece enraizado dentro de nós. Nosso prazer, desde sempre, está relacionado ao ato de agradar o outro ou a outra (no meu caso, só posso falar a partir das experiências heterossexuais) e de apresentar uma bela performance – nem recatada demais, nem selvagem demais. Os dois comportamentos assustam. Até o orgasmo vira uma obrigação, um papel a cumprir, um score do parceiro – se você não gozar, é a autoestima dele que está em jogo ou, deus-nos-livre, tem algo de errado com você.

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Enquanto a conversa seguia esse ritmo, Ana entrou em um assunto novo no meu universo: platôs de orgasmo. Segundo a terapeuta, existem diferentes níveis do gozo feminino – e, má notícia, as mulheres geralmente não chegam nem na metade do primeiro. Dito isso, veio a dica: “Em algum momento da sessão, pode ser que você chegue em um ponto desconfortável, intenso demais. Pode ser que você queira parar, que ache que não vai dar conta. Meu conselho é: tente ultrapassar essa barreira, tente suportar esse limite entre prazer e agonia e veja o que acontece”. Aí me pergunto: será que foi deste momento, ao ultrapassar essa barreira, que me veio toda essa metáfora sobre me entregar à vertigem e – em seguida – à sedutora queda?

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“O que é sexualidade para você?” Se a terapeuta tivesse me questionado sobre o sentido da vida, talvez fosse mais fácil responder

Na Casa Prazerela, a exploração das nuances do corpo feminino dão toques às terapias oferecidas
Na Casa Prazerela, a exploração das nuances do corpo feminino dão toques às terapias oferecidas (Mariana Caldas/Fotografia)

Depois da conversa, e de assinar um termo de consentimento, fui ao banheiro, tirei a roupa e deitei em um colchão no chão. Coloquei a venda – opcional – e tentei fazer os exercícios de respiração que a Ana me ensinou para desligar a mente, como uma meditação. Com as luzes apagadas e uma música baixa de fundo, a sessão começou: a terapeuta deu início ao processo chamado “despertar”, no qual tocou meu corpo todo, da cabeça aos pés, com as pontas dos dedos – de frente, de costas e dos dois lados. Após essa etapa, ela começou a massagem genital com óleo de coco. Foi uma sensação completamente nova e, seguindo as orientações da Ana, procurei não pensar no assunto, só sentir. Depois da massagem, ela começou a estimular distintas regiões da vulva – importante dizer que o procedimento é todo feito na área externa, nada é introduzido na vagina – com vibradores de diferentes formatos e intensidades. Não vou saber dizer quantos e quais vibradores foram usados, só me lembro de sentir vontade de rir, chorar, gritar, me contorcer e sair correndo pelada pela Heitor Penteado – tudo ao mesmo tempo. Não à toa, a sala tem isolamento acústico; um respeito à privacidade em um momento tão… primitivo.

No fim da sessão, fiquei deitada estirada no colchão, pingando de suor e em transe. Por mim, teria dormido ali mesmo. Mas meu racional me lembrou que eram quatro da tarde de uma quarta-feira útil e a vida lá fora me chamava. Sentei no colchão, falei o que consegui com a Ana sobre a experiência (ainda estava meio ausente do planeta), tomei um banho no banheiro (lindo!) e fui embora. Difícil dizer o quanto uma experiência como essa ecoa na gente – você pode sair de lá dando pirueta ou pode ir embora calada e sonolenta e só bater alguma coisa dias depois. Seja como for, o conselho de ouro da casa é: não tome decisões importantes por até 72 horas depois da sessão. “Tem gente que sai daqui querendo desmanchar casamento, largar o emprego, cortar o cabelo radicalmente”, conta a fundadora.

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Mariana Stock encontrou em uma rua tranquila do bairro de Perdizes o espaço perfeito para montar a Casa Prazerela
Mariana Stock encontrou em uma rua tranquila do bairro de Perdizes o espaço perfeito para montar a Casa Prazerela (Mariana Caldas/Fotografia)

O nascimento e a pequena morte

A trajetória de Mariana até a Prazerela foi relativamente longa. A curitibana que, por muitos anos, foi executiva de multinacionais, abandonou o mundo corporativo em meio a uma angústia profunda e foi caçar seu propósito em outros cantos. “Venho de uma cidade conservadora, de família idem. Eu levava uma vida bem regrada e segui o protocolo corretamente. Me formei, entrei em multinacional e, dois anos depois, me bateu: ‘gente, acho que errei. Vou ter que começar tudo de novo.'”

De lá para cá, Mariana fez de tudo um tanto: deu a volta ao mundo, se mudou para São Paulo, voltou para o mercado sete anos mais tarde, saiu de novo e recomeçou sua jornada em busca de algo que nem ela sabia o que era. Formou-se em psicanálise, fez curso de desenho, escrita criativa, canto, dança, mas foi na beleza – e na dor – do parto que ela teve um insight. “Em uma sessão de terapia tântrica, me vi parindo um bebê. Foi uma catarse. Percebi que tem algo sobre o parto que ninguém está falando. Sobre a intensidade, que não é só sobre dor, existe uma potência. Havia algo ali que eu não sabia sobre ser mulher”, conta ela, que, seis meses mais tarde, decidiu fazer um curso de doula com a parteira mexicana Naolí Vinaver, uma referência no assunto. “Esse curso foi a grande segunda virada na minha vida. A Naolí explica que parto é sexo e sexo é parto”, diz Mariana. “O parto é da obra da santidade, o sexo é do profano. A mulher está ali, parindo, mas abafa o caso, não conta que ela transou. É uma hipocrisia tão absurda, está tudo junto.” 

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A partir deste episódio, Mariana também entendeu que não era exatamente ser doula seu propósito, mas o encontro com a parteira mexicana foi transformador. Dali, ela decidiu, então, fazer a formação em terapia tântrica, mas descobriu logo que a abordagem não era sua praia. Se, por um lado, ela lidava com a angústia do não saber, por outro, o caldo que daria vida à Prazerela já estava se formando. Mariana foi dar palestras, workshops, começou a ser convidada para falar em programas de TV e chamar a atenção de cada vez mais gente. E, então, percebeu que, se o discurso convidava a uma ampliação da consciência sobre a sexualidade feminina, faltava entender como fazer isso na prática. “Aí surgiu essa ideia de fazer uma casa só para mulheres, que tivesse todo o cuidado não só com a terapia, mas em como a mulher é recebida”, conta ela. E, assim, em 2017, em uma bela e ampla casa da Vila Madalena, nasceu a Prazerela. Além da terapia orgástica, o espaço oferece cursos, workshops e eventos diversos – todos alinhados à sexualidade positiva como caminho para a potência feminina. A Casa ainda oferece 10 atendimentos sociais por mês. “Entendemos que vivemos em um país com uma disparidade social enorme e que o acesso à própria sexualidade é um direito de todas as mulheres, então tentamos ampliar nosso alcance nesse sentido”, diz Mariana. 

“Existem mares aí dentro em que você não está navegando, e são teus, é o teu mundo”

Mariana Stock, criadora da Casa Prazerela

Se, por um lado, o público vem aumentando cada vez mais, a Casa ainda é alvo de críticas e ataques de uma turma mais conservadora, que, como conta Mariana, acham que o que ela faz é “putaria”. No dia da entrevista, por exemplo, a conta de WhatsApp da Prazerela, principal meio de comunicação da casa com clientes e interessadas, tinha sido bloqueada por causa de uma denúncia. “Em um momento tão conservador e retrógrado como o que estamos vivendo, manter a Prazerela é resistência, um ato político, uma reivindicação histórica.”

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Mariana, ainda, faz questão de ressaltar: a Prazerela é agnóstica – lá não existe filosofia, crença ou religião, todas as mulheres são bem-vindas. “Aqui vem evangélica, católica, candomblecista, agnóstica. Mulheres trans, mulheres com pênis. Então, é fundamental que a gente nomeie o que fazemos da ordem física. É muito importante em termos de respeito e inclusão, porque quando digo que você não precisa acreditar em nada para viver isso aqui, estou falando que toda mulher pode.” 

Para ela, nada é uma barreira, muito menos a idade – pelo contrário: há sempre tempo de descobrir o que vive nas nossas profundezas. Ela conta a história de uma mulher de 72 anos que sempre a emociona: “Essa senhora chegou aqui muito nervosa, achando que aquilo não era para ela, que já tinha passado da idade. Eu respondi: ‘Quem dá o limite aqui é você, este é um espaço seguro, na hora que você falar chega é chega.’. Ela subiu e, quando desceu, me disse: ‘Obrigada por não me deixar morrer sem viver isso. Naveguei por mares dentro de mim que eu nem sabia que existiam’.” Para Mariana, esta é a metáfora mais valiosa: “Existem mares aí dentro em que você não está navegando, e são teus, é o teu mundo.”

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Casa Prazerela
Terapia orgástica | sessão: 2h | R$450
Rua Rifaina, 80
Telefones: 11 3864.8444 | 11 95061.9897 (Whatsapp)
Prazerela.com.br

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