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escritor tcheco Milan Kundera escreveu: “Quando o pólo norte se aproximar do pólo sul quase a ponto de tocá-lo, o planeta desaparecerá e o homem ficará num vazio que o atordoará e o levará a ceder à sedução da queda.” Esse é um dos muitos trechos de A Insustentável Leveza do Ser que me marcaram na época em que li o livro; curiosamente, tempos depois, essa frase me voltou à cabeça, junto com outros pensamentos aparentemente sem sentido ou conexão entre si, durante um evento inédito na minha vida: uma sessão de terapia orgástica.
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Sim, o nome é autoexplicativo, mas é bom não parar na primeira interpretação – a abordagem proposta pela Casa Prazerela, núcleo de sexualidade positiva localizado na Zona Oeste paulistana, vai muito além de ajudar a mulher a descobrir o que é um orgasmo de verdade. A terapia orgástica é uma sessão de duas horas conduzida por uma terapeuta que, após uma conversa e uma massagem pelo corpo todo, estimula a área genital pelo toque e, a seguir, por vibradores diversos com o objetivo de apresentar à mulher sua potência orgástica – na maior parte das vezes, muito pouco explorada durante o sexo, digamos, convencional.
“Desde o momento em que nascemos, nós, mulheres, somos convidadas a nos distanciar do nosso eu, do nosso mundo interno, do que é habitar um corpo”, diz Mariana Stock, criadora do projeto. “Mesmo as mulheres que se consideram super liberadas raramente se sentem à vontade na própria pele. Somos muito programadas para dar prazer primeiro ao outro, nunca a nós mesmas, ainda que a gente racionalmente defenda o contrário. Eu mesma vivi com essa crença por muito tempo”, explica. Este é o propósito principal da Prazerela: deixar para trás um longo legado de sexualidade negativa e começar a construir uma nova, positiva. “Não dá para mais uma geração passar por tudo que nós passamos e, quando chegar aos 30, 40, continuar se reprimindo e não entrando em contato com essa potência orgástica.”
“Mesmo as mulheres que se consideram super liberadas raramente se sentem à vontade na própria pele. Somos muito programadas para dar prazer primeiro ao outro, nunca a nós mesmas”
Mariana Stock
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No entanto, se essa potência encontra suas origens no sexo – ou, melhor, na sexualidade –, este, defende Mariana, é só o começo. “Sexualidade vai além do sexo, é pulsão de vida. É muito com essa escuta e com esse olhar analítico que a gente conduz o trabalho aqui.”
Claro, importante dizer, a experiência entra no campo subjetivo da mulher, o que significa que, muito provavelmente, cada uma vai sentir uma coisa diferente. Para uma amiga, que marcou uma sessão logo depois da minha recomendação enfática, as sensações foram puramente físicas – ela relata ter desligado a cabeça e alcançado diversos orgasmos “sem trabalho”. Para outra amiga, que nunca tinha gozado, foi uma descoberta assombrosa em vários sentidos – inclusive, claro, a do primeiro orgasmo.
Mas, voltando à citação de A Insustentável… e a uma tentativa de traduzir como a sessão bateu para mim: a experiência certamente transcendeu o campo do prazer sexual. Claro, dá prazer, sim (e muito), mas não me lembro de ter rolado 1 ou 100 orgasmos propriamente ditos – foi uma sensação contínua que se intensificava conforme a sessão avançava. Absolutamente nada parecido com o que eu entendia por orgasmo até então. Quando Kundera fala sobre o “desejo da queda”, ou, para lembrar outra frase importante do livro – “a vertigem (…) é o desejo da queda do qual nos defendemos aterrorizados” –, para mim, em determinado momento da sessão, a sensação foi similar à descrita na obra: a de satisfazer plenamente o desejo da queda, mesmo com uma ponta (ou mais) de medo; de me soltar de todas as tensões neuróticas da vida comum e despencar de volta a um núcleo muito sensível com o qual perdi contato faz tempo. A tal vertigem, que assustava a princípio, representava a total liberdade – pelo menos durante aquelas duas horas.
Achou uma gigantesca viagem mística? Talvez seja. Mas, precisamente por me considerar muito mental, é que a coisa toda me pareceu uma escapada da minha confortável zona racional e uma espécie de retorno ao meu instinto – a uma potência que eu não sabia, ou nem lembrava, que morava em mim. Quando dei esse relato para a Mariana, durante nossa conversa no dia seguinte à sessão, ela me disse: “É isso! É a sensação de que a gente consegue acender uma cidade inteira.”
Embora o inconsciente seja matéria-prima da psicanálise – a “descoberta” mais bem-sucedida de Sigmund Freud –, existe um imenso universo de terapias que têm o objetivo de acessá-lo por meios que vão além da fala ou da interpretação dos sonhos. Alcançar o inconsciente através do toque já é uma técnica bastante explorada por outras abordagens terapêuticas, como a bioenergética.
“É muito importante em termos de respeito e inclusão, porque quando digo que você não precisa acreditar em nada para viver isso aqui, estou falando que toda mulher pode”
Mariana Stock
A criadora do projeto, que além de um diploma em comunicação também tem formação em psicanálise, defende que a terapia orgástica pode ser uma poderosa ferramenta de acesso aos nossos cantos mais obscuros, mais reprimidos, e um interessante complemento a um processo terapêutico que a mulher já esteja vivendo. “Muitas mulheres que chegam aqui vêm por indicação de suas psicólogas e psicanalistas”, conta ela. Na Prazerela, são cinco terapeutas – três delas já tinham formação em tantra, e todas passaram por uma formação específica para a terapia orgástica. Mariana destaca, ainda, a supervisão quinzenal com a filósofa e psicoterapeuta Regina Favre.
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A experiência
“O que é sexualidade para você?”, me perguntou, de cara, Ana, a terapeuta. Se ela tivesse me questionado sobre o sentido da vida, talvez fosse mais fácil responder. Comecei a formular uma resposta, ela me interrompeu: “Não, não perguntei o que é sexo, mas sexualidade”. Dali em diante, decidi parar de atuar como mulher bem-resolvida sexualmente e comecei a mais perguntar do que responder. Ana me deu uma aula: falou sobre como a mulher tem dificuldade de gozar com o corpo – muitas vezes, precisamos recorrer a um sem-fim de fantasias para conseguir chegar lá – e como, desde meninas, somos programadas para entender o sexo como um tabu, o que, por mais que viremos adultas modernas e liberadas, permanece enraizado dentro de nós. Nosso prazer, desde sempre, está relacionado ao ato de agradar o outro ou a outra (no meu caso, só posso falar a partir das experiências heterossexuais) e de apresentar uma bela performance – nem recatada demais, nem selvagem demais. Os dois comportamentos assustam. Até o orgasmo vira uma obrigação, um papel a cumprir, um score do parceiro – se você não gozar, é a autoestima dele que está em jogo ou, deus-nos-livre, tem algo de errado com você.
Enquanto a conversa seguia esse ritmo, Ana entrou em um assunto novo no meu universo: platôs de orgasmo. Segundo a terapeuta, existem diferentes níveis do gozo feminino – e, má notícia, as mulheres geralmente não chegam nem na metade do primeiro. Dito isso, veio a dica: “Em algum momento da sessão, pode ser que você chegue em um ponto desconfortável, intenso demais. Pode ser que você queira parar, que ache que não vai dar conta. Meu conselho é: tente ultrapassar essa barreira, tente suportar esse limite entre prazer e agonia e veja o que acontece”. Aí me pergunto: será que foi deste momento, ao ultrapassar essa barreira, que me veio toda essa metáfora sobre me entregar à vertigem e – em seguida – à sedutora queda?