![A -](https://preprod.elastica.abril.com.br/wp-content/uploads/2020/09/A.png)
Helena* estava em uma festa – quando elas ainda existiam – flertando com um boy desde a portaria do evento e o rapaz, todo bonitão, barbudo, com boné do MST e camisa de botão, estava retribuindo os olhares. Enquanto ela estava atenta ao bartender do bar, que estava bastante atarefado, o rapaz chegou direto no pescoço dela com um beijo e um “olá” cheio de segundas intenções. Não demorou muito até que estivessem no banheiro em meio a muitos amassos e beijos. Helena, que me disse que estava bêbada, mas com juízo, pediu ao rapaz para colocar a camisinha, antes que iniciassem explorações mais profundas, e de prontidão ele a colocou. Alguns minutos depois, todo o tesão da Helena acabou quando, de repente, ela viu ao lado da privada a camisinha que ela havia entregado ao barbudo esquerdomacho. Ela interrompeu tudo e brigou com o dito cujo que teve a coragem de dizer que a culpa não era só dele e que era ela quem tinha topado.
O stealthing ou stealth é um termo usado para descrever o ato de retirar a camisinha durante o sexo sem o consentimento e a percepção da parceira ou do parceiro – macho pra variar fudendo o rolê. Mesmo com um nome em inglês, – que, em tradução literal, significa furtividade – trata-se de uma prática comum no mundo todo. Em estudo recente da Universidade Monash, na Austrália, publicado em 2019, sobre a prevalência do stealthing, foi visto que uma em cada três mulheres e um a cada cinco homens que fazem sexo com homens (HSH) já passaram por essa situação.
Diferente do caso da Helena, que percebeu a retirada da camisinha, a maioria dos participantes da pesquisa que passou por situações como essa relatou que só veio a descobrir o ocorrido após o ato sexual. Nesse caso, a chance de dar merda repercussões negativas da prática, como infecção por HIV ou gravidez, por exemplo, ficam ainda mais prováveis. Em segundo lugar, dentro da amostragem da pesquisa, o que mais foi relatado pelos participantes foi a falta da camisinha ser percebida durante a transa, mas ela ainda assim continuar sem o consentimento da vítima – o famoso estupro.
![BrunaMaia_stealth04 -](https://preprod.elastica.abril.com.br/wp-content/uploads/2021/04/BrunaMaia_stealth04-1.jpg?quality=70&strip=info)
A priori, tais variações podem não parecer importantes, já que, de um jeito ou de outro, houve um abuso. Mas, sob o ponto de vista jurídico, a forma com que tudo aconteceu irá diferenciar um abuso sexual de uma violência sexual ou estupro. Conversei com Cirion Leonardo, advogado e criminalista de Porto Alegre, que é alguém que sempre procuro para tentar desamarrar os nós conceituais da lei, e ele me explicou como a justiça vê o stealth e o diferencia do estupro: “No estupro, o consentimento é desrespeitado; no stealthing o consentimento é fraudado. Pode acontecer – como aconteceu com a Helena – de a vítima notar em tempo hábil a remoção do preservativo e, a partir daí, assinalar que não deseja continuar. Entretanto, se o agente forçar o seguimento de alguma forma, estamos assim diante de uma situação de estupro.”
E foi o que aconteceu com a Júlia*, que me contou em detalhes como foi a sua experiência. A psicóloga, que tinha acabado de sair de um divórcio, estava se aventurando nos aplicativos e até então só havia encontrado parceiros que considerava incríveis. Em uma noite de segunda-feira, após o trabalho, ela chamou um novo pretendente para o seu apartamento. O encontro – que, para ela, não estava lá essas coisas – acabou em amassos mais intensos e em uma tentativa de converter aquilo, que a princípio estava sendo um fiasco, em ao menos uma boa transa – quem nunca, né. Daí o desenrolar da história foi parecido com o da Helena, entretanto, no caso da Júlia, o rapaz, depois de ter que recolocar a camisinha várias vezes mediante os pedidos da moça, resolveu forçar a barra e ignorar o terceiro pedido dela. Júlia, felizmente, conseguiu em determinado momento sair das mãos do rapaz e fingir cansaço pedindo que o ele fosse embora, pois tinha que acordar cedo e não estava rolando.
Conversando com a Júlia, ela me diz que hoje, olhando para trás, entende o que sofreu como um estupro, mas que no momento estava tudo muito nebuloso e confuso. Ela, em meio ao medo de ser agredida ao tomar uma iniciativa mais firme com o estuprador ou de estar sendo indelicada com o rapaz que ela tinha acabado de conhecer, não conseguiu interromper o que estava acontecendo logo de início e, por isso, persistiu mais algumas vezes. Após o evento, tal confusão foi reforçada por amigos, que ao saberem do caso, julgaram a atitude de Júlia dizendo que ela não deveria fazer sexo casual, além de diminuirem o que ela estava sentindo afimando que é de praxe coisas do tipo acontecerem e que isso poderia ter sido bem pior. “É foda, porque a gente [mulher] demora para gozar e tem problema para concentrar ali, pois temos o tempo todo de ficar preocupadas se o cara está usando camisinha ou se está fazendo qualquer merda.”
“É foda, porque a gente [mulher] demora para gozar e tem problema para concentrar ali, pois temos o tempo todo de ficar preocupadas se o cara está usando camisinha ou se está fazendo qualquer merda”
Júlia*
O que me chama atenção nesse caso é o abuso que, além de físico, é também psicológico. A vítima – e isso foi uma unanimidade entre nos relatos que coletei –, frente à situação, quase entra em uma paralisia e um estado de catarse, como descreveu Júlia. O agressor toma isso como vantagem e continua o ato ou tenta negociar a continuação do abuso.
![BrunaMaia_stealth07 -](https://preprod.elastica.abril.com.br/wp-content/uploads/2021/04/BrunaMaia_stealth07-1.jpg?quality=70&strip=info)
Acredito que tal choque e imobilidade aconteçam por dois motivos: em primeiro lugar, pelo fato de que as relações sexuais por si só já são cheias de tabus, dúvidas e inseguranças. Numa transa, ficamos muito vulneráveis e a mercê do julgamento de quem está junto, deixando tudo ainda mais tenso. Além disso, eu percebo que a falta de educação sexual gera um sentimento de “puts, mas será que isso é certo? Que rola sempre assim?”, e tal insegurança impede que, na hora, tomemos uma atitude definitiva. É comum que, logo após o ocorrido, a vítima recorra a amigos numa tentativa de busca de conforto ou confirmação de que “ai, isso sempre rola”, como aconteceu com a Júlia.